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Zolpidem e outras drogas Z: por que é tão difícil parar de usar?

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Ansiedade intensa, irritabilidade, rebote de insônia, tremores, sudorese, convulsão. Não são poucas as possíveis consequências graves de um desmame das drogas Z sem acompanhamento. Voltadas à indução do sono, essas medicações, que englobam zolpidem, zoplicona, eszoplicona e zaleplon, foram pensadas para curtos prazos e baixa dosagem. Em se tratando do zolpidem, o mais consumido no Brasil, o consumo não deveria ultrapassar 14 dias, e não mais que um comprimido de 10 miligramas por dia.


A coisa, porém, fugiu totalmente de controle. E parar de repente e sozinho com aquilo que causou dependência nesse nível pode ser uma péssima alternativa.


As drogas Z agem no Gaba-A, um tipo de receptor para o neurotransmissor Gaba, principal inibidor do sistema nervoso central. A priori, elas trariam efeitos sedativos, mas sem derrubar o freio social, como faz o álcool, nem causar comprometimento cognitivo e vício, como os benzodiazepínicos. A questão é que vêm sendo consumidas indiscriminadamente, ignorando a prescrição original.


“O zolpidem foi elaborado para tratar insônia aguda ou episódica, especialmente quando há dificuldade em iniciar o sono”, lembra o psiquiatra Michel Haddad, chefe da seção de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE), em São Paulo. O uso prolongado pode levar à tolerância, à dependência, a alterações cognitivas, a prejuízos na coordenação motora e até a alterações comportamentais durante o sono, como o sonambulismo.


Pior ainda quando o consumo envolve caixas e caixas do medicamento no mesmo dia. “Cheguei a ter um paciente que consumia 700 miligramas diários de zolpidem”, diz Leonardo Ierardi Goulart, neurologista e neurofisiologista clínico especialista em transtornos do sono do Einstein Hospital Israelita.


A diferença entre as drogas Z é basicamente sua meia-vida, ou seja, o tempo em que permanecem no corpo. O zaleplon tem curtíssima duração no organismo, cerca de uma hora, enquanto a meia-vida do zolpidem é de duas a três horas e a da zoplicona e eszoplicona, entre cinco e seis.


O zolpidem é o mais barato, está há mais tempo no mercado, é mais conhecido e tem maior disponibilidade de marcas. “Quanto menor a meia-vida, maior o risco de causar dependência porque a medicação fica pouco tempo no corpo. A pessoa acorda e logo toma outro, e outro, e outro”, diz Talita Di Santi, psiquiatra assistente do Programa da Mulher Dependente Química (Promud), do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), focado no tratamento de mulheres com dependência de substâncias psicoativas. “A gente tende a preferir drogas com meia-vida mais longa, porque, nesse sentido, o corpo não sente tanta falta.”


Estratégia química e psicológica


Não à toa, uma das ferramentas farmacológicas para desmamar do zolpidem é trocá-lo por um remédio de meia-vida mais duradoura e que ocupe os mesmos receptores, como o clonazepam, cujo efeito permanece por cerca de 20 horas. O passo químico seguinte é fazer o desmame gradual do próprio clonazepam. “Isso não vai deixar a pessoa com abstinência”, diz Goulart.


Mas ele ressalta que eficiente mesmo contra a dependência de zolpidem é a terapia cognitivo-comportamental. “O que pega nesses pacientes é a dependência psicológica, a mais difícil de tratar, porque a pessoa quer a sensação de controle, de botar o comprimido embaixo da língua e apagar”, afirma.


Talita segue a mesma linha. A psiquiatra assina, juntamente com sete colegas da USP, um artigo publicado em dezembro de 2024 na revista científica Frontiers in Psychiatry que descreve cinco casos de mulheres severamente dependentes de zolpidem. Com idades entre 25 e 45 anos, elas apresentaram doses orais crescentes da medicação (60 a 900 mg/dia), numa dependência que tomou de seis meses a sete anos de suas vidas. Os efeitos adversos envolveram comprometimento da memória e da interação social, quedas e convulsões. Foram identificadas comorbidades psiquiátricas, como transtornos alimentares, depressão recorrente, traços de transtorno de personalidade borderline e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), assim como histórico de abuso físico e psicológico.


A terapia em grupo se mostrou ideal no tratamento dessa dependência medicamentosa. “Os contextos associados, principalmente entre as mulheres, são muito complexos, além do estigma que aflige aquelas que usam drogas”, diz Talita. No ambulatório do Promud, a equipe de cuidado é multidisciplinar, e os familiares são chamados para encorpar a rede de apoio.


Para os especialistas, o fato de há um ano se exigir receita azul para a compra de zolpidem fez grande diferença. Também conhecida como notificação de receita B, a receita azul é um documento utilizado para a prescrição de medicamentos psicotrópicos que podem causar dependência. Somente médicos habilitados podem emiti-la.


De azul para branca, de branca para azul


Desenvolvido por uma farmacêutica francesa, o zolpidem foi lançado na Europa em 1988. Chegou ao Brasil em 1997 e, um ano depois, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) soltou uma portaria que autorizava sua liberação como medicamento de tarja preta. Em 2001, no entanto, a agência entendeu que o zolpidem em dosagem inferior a 10 miligramas podia ser prescrito em receita branca simples, aquela de uma única via, que não fica retida na farmácia após a compra.


Em 2007, a patente expirou, e a droga pôde ser comercializada por vários laboratórios na versão genérica, o que barateou seu custo (é possível comprar na farmácia uma caixa de 30 comprimidos de hemitartarato de zolpidem por cerca de R$ 20). Desde então, o consumo explodiu. Segundo a Anvisa, foram vendidas 13,6 milhões de caixas de zolpidem em 2018 e 23,3 milhões em 2020 — um aumento de quase 71,4% em dois anos.


Em 1º de agosto de 2024, ou seja, 23 anos depois da liberação da Anvisa, o consumo desenfreado do medicamento (e, mais do que isso, as consequências psicossociais nefastas do seu uso abusivo) levou a agência a rotulá-lo novamente como tarja preta e exigir a receita azul para a prescrição, independentemente da concentração do produto. Hoje, o consumo teria se estabilizado no País, mas num patamar alto, em torno dos 22 milhões de caixas anuais.


“Houve mesmo um aumento expressivo no consumo de hipnóticos durante e após a pandemia, entre eles as drogas Z”, diz Michel Haddad. “Esse crescimento refletiu o impacto da pandemia sobre o sono da população”, completa o psiquiatra, para quem o uso dessa medicação segue preocupante, principalmente nos grandes centros urbanos.


Para Talita, a receita azul dá um contorno melhor da dependência para o consumidor. “Com a restrição, o paciente tende a procurar mais o serviço de saúde porque reconhece que está vivendo um transtorno por uso da substância”, afirma. Ao mesmo tempo, e infelizmente, a tarja preta abre espaço para a compra de forma irregular, seja por farmacêuticos que liberam a venda, seja pela internet. “Tenho paciente que recebe o medicamento em casa 20 minutos depois do pedido feito num grupo de whatsapp”, diz a psiquiatra.


Goulart foca no equívoco de indicar um indutor de sono para tratar insônia crônica. “Muito mais que a falta de sono, a insônia crônica é um excesso de alerta, uma preocupação com o próprio sono”, define. Por isso, sua crítica se estende também a rituais e mais rituais que buscam “higienizar” o sono como uma forma de domá-lo: “Se a pessoa acredita, por exemplo, que tudo vai dar errado na vida dela se ela não dormir, que vai perder o emprego se não fechar os olhos por oito horas, acaba ferindo um dos principais requisitos para uma boa noite de sono, que é estar relaxado”.


Ele recorre novamente à terapia cognitivo-comportamental, de preferência aplicada por psicólogos do sono, para quebrar esse paradigma, propondo mudar crenças que embasam comportamentos indutores da insônia. E bate no martelo de que as drogas Z estão longe de ser a solução, em qual sentido for. “Foi uma luta para conseguir a exigência da receita azul. Arrisco dizer que, em termos de drogas de prescrição médica e de volume de prescrição, o zolpidem é aquela que mais gera dependência na humanidade. É uma das mais perigosas.”


Fonte: Estadão

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