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Vinho misturado com água, carne e orações: os hábitos dos monges medievais centenários



Acordar cedo, trabalhar no jardim, copiar escritos antigos, curar doentes, rezar múltiplas vezes ao dia, e fazer tudo isso em uma vestimenta modesta. Essa é a imagem que nos vem à cabeça quando pensamos sobre o modo de vida dos monges, muitas vezes visto como sinônimo de bem-estar e longevidade.


Estudos experimentais publicados em 2021 e realizados em mosteiros na Áustria e na Alemanha confirmaram essa percepção ao revelarem que esses religiosos tendem a viver aproximadamente cinco anos mais, em média, em relação a pessoas comuns. Para explorar os segredos do envelhecimento bem-sucedido desses indivíduos, pesquisadores do Instituto de Demografia da Academia Austríaca de Ciências examinaram a expectativa de vida de 1158 monges que residiam nesses locais, incluindo 622 mulheres e 536 homens que representavam 16 ordens religiosas diferentes nos dois países.


De acordo com o pesquisador Mark Luy, responsável por conduzir o estudo, esse resultado sugere que, independentemente do gênero, ao adotar estilos de vida monásticos, incluindo a adesão a rotinas, práticas alimentares e oração, a expectativa de vida média de homens e mulheres aumentaria. Mas será que o padrão de vida dos monges, tão estimado hoje em dia, sempre foi considerado uma referência de longevidade?


Em filmes como O Nome da Rosa, ficção adaptada do romance homônimo de Umberto Eco, as rotinas dos monges medievais são marcadas por análises insessantes de livros recheados de reviravoltas em bibliotecas com acervos gigantescos. Mas será que o cotidiano do Frei Guilherme de Baskerville e seu fiel Adso, personagens principais da trama, foi apenas uma fantasia literária? Existiam bibliotecas tão boas? Como eles se alimentavam? Suas condições eram melhores, em comparação ao modo de vida dos monges hoje?


Seis especialistas se reuniram em um curso organizado pela Fundação Santa María la Real en Aguilar de Campoo, na Espanha, no último final de semana para responder essas e outras questões sobre as vivências desses religiosos nos mosteiros durante a Idade Média. Saiba quais foram as respostas apontadas durante esse encontro:


Cuidados com os doentes


Segundo o historiador médico Fernando Salmón Muñiz, os monges medievais, determinados a doar seus espíritos a Deus, desprezavam os cuidados com o corpo e sofriam com a resignação quando estavam doentes. Influenciados pelo conhecimento médico do mundo greco-latino, os religiosos enxergavam as enfermidades apenas como infalíveis desequilíbros nos quatro humores que o corpo possuía: sangue, catarro, bile amarela e bile negra.


Para prevenir doenças, eles faziam sangramentos, que podiam ser de até dois litros de sangue e ocorrer na frequência de até seis vezes ao ano, de acordo com o especialista em História da Arte Pablo Abella Villar, técnico da Fundação Santa María la Real. Abella também apontou que, devido à fraqueza após esses procedimentos, eles tinham permissão para ficar três dias na enfermaria, vista como "um paraíso na Terra" por ser um dos únicos espaços aquecidos do mosteiro. Além disso, nesses locais eles podiam comer carne, algo geralmente proibido porque a sua dieta era restrita a pães, vegetais e frutas. O tempo na enfermaria era tão estimado que proporcionava situações em que os monges fingiam estar doentes, conforme relatou o historiador.


Nas enfermarias também lhes eram fornecidas algumas ervas, e somente quando o monge estava gravemente doente é que se recorria a um médico remunerado. Também nesses casos eles podiam tomar banho, o que nas suas vidas saudáveis ​​era pouco frequente, uma vez que a nudez associada ao banho poderia incitar a prática sexual, segundo os dogmas religiosos seguidos.


Consumo de vinho nos monastérios


Segundo a arqueóloga Ester Penas González, a água usada para o abastecimento dos mosteiros era retirada de nascentes ou cisternas que armazenavam a chuva. No entanto, eles não tomavam água pura, apenas bebiam caldos, infusões ou vinho misturado com água, fundamental nas liturgias para abençoar as paredes do mosteiro, consagrar monges e até mesmo compor práticas de penitências.


Apesar de parecer uma rotina difícil, Abella destacou que os mosteiros surgiram de doações de terras e propriedades de reis ou nobres, porque eles acreditavam que essas boas ações lhes dariam um passaporte para uma vida celestial quando morressem. — Os mosteiros eram grandes centros de produção econômica. Tinham pomares, fazendas, pombais, pisciculturas, moinhos, e quem entrava geralmente pertencia a famílias abastadas. — ressaltou o historiador. Além disso, ele reconheceu que os monges viviam com os chamados conversos, pessoas de classe social mais baixa encarregadas de tarefas manuais, o que lhes permitia dedicar cerca de seis horas por dia ao trabalho litúrgico.


Cópias de escritos antigos


De acordo com a professora de Paleografia (escrita antiga) e Diplomática (estrutura documental) Marta Herrero de la Fuente, nem tudo que foi representado no cinema e nos livros sobre a escrita e cópia dos textos religiosos era exatamente igual para todos os mosteiros, a começar pelo scriptorium (escritório, traduzido do latim). O espaço destinado ao armazenamento de livros variava de tamanho de acordo com os recursos disponíveis para cada instituição.


Herrero estima que o número médio de livros de uma biblioteca de um mosteiro dos séculos XI e XII poderia ser de 40 a 50, sendo quase todos litúrgicos, mas que poderiam ser armazenados em locais diveros. — Os livros eram guardados como tesouros, mas em espaços diferentes, como hoje se faz nas casas. Além da biblioteca, os religiosos eram encontrados no altar e na sacristia; os de assuntos médicos na enfermaria; os de leitura para a liturgia, no armarium, uma espécie de nicho que ficava próximo aos oratórios — esclareceu a pesquisadora.


Quanto aos monges copistas, Herrero afirmou que apenas dois ou três monges só se dedicavam a isso. Segundo ela, não lhes era reservado nenhum espaço específico, mas normalmente era escolhida uma área quente para que as peles usadas nos pergaminhos não sofressem com o frio. Eram usadas penas de ganso afiadas com lâminas para que as letras não fossem em traços grossos.


Nas notas encontradas ao final dos livros manuscritos, eram encontrados relatos de que esse trabalho durava de seis a sete meses, mas existiam casos que a cópia demorava até dois anos para ser finalizada, apesar da habilidade dos religiosos de decifrar os textos complexos escritos em latim. Era uma tarefa difícil, se nos atermos ao que escreveu um monge de Burgos, província na Espanha, no século X: “A visão fica enfraquecida, as costas ficam curvadas e as costelas e a barriga eram esmagadas”.


Outras formas de comunicação


O professor de História da Arte da Universidade Complutense de Madrid José Luis Senra Gabriel y Galán também analisou a importância de outros espaços monásticos, como a casa capitular, onde os membros da comunidade religiosa resolviam questões temporais e onde os monges que violavam os regulamentos eram repreendidos.


Outro local estudado por Senra foi o refeitório ou sala de jantar, que com o tempo foi apresentando uma arquitetura mais grandiosa. — Eles comiam em silêncio absoluto, e só o monge encarregado das leituras bíblicas podia falar. Para pedir alguma comida ou bebida, um era emitido. Essa cadeia de sons levou ao desenvolvimento de uma linguagem de sinais, anterior a usada por pessoas surdas. Isso aconteceu especialmente nos mosteiros ingleses, onde passou a existir um sistema de 360 ​​sinais — comentou o historiador.


Vincent Debiais, professor de Paleografia na Escola de Estudos Superiores de Ciências Sociais de Paris, ressaltou durante o encontro a existência de inscrições funerárias em mosteiros. — Na catedral de Girona, na Espanha, por exemplo, existem 444 inscrições. São elementos frágeis porque foram destruídos ou deslocados. Para cada preservado, estima-se que 20 desapareceram — apontou ele.


Debiais também destacou a variedade de tipos de inscrições nas pedras: em prosa ou verso, simples ou textos longos. Elas podiam estar em túmulos ou em espaços onde ninguém estivesse enterrado, sempre em latim, fazendo parte de uma rede de escrita, não mais consideradas mensagens autónomas.


Fonte: O Globo

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