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Transplante de medula: a quimera de Washoe

Na mitologia grega, a quimera é um animal composto de partes de dois ou mais animais, como a cabra, o leão e a serpente, e que lança fogo pelas narinas. A medicina usa o termo para designar organismos que apresentam conjuntos de células com genomas diferentes. Este fenômeno, conhecido como quimerismo, foi destaque recentemente nos principais periódicos do mundo por causa do relato sobre um estranho caso feito por um grupo de especialistas em medicina forense do estado de Nevada, nos Estados Unidos [1].

No final do ano passado, os cientistas da divisão forense do gabinete do xerife do Condado de Washoe, em Nevada, apresentaram um trabalho sobre a evolução do transplante de medula de Chris Long, morador da cidade de Reno, no 28º congresso da International Society for Forensic Genetics, realizado em setembro de 2019, na República Tcheca.

Chris trabalhava com tecnologia da informação (TI) na delegacia do Condado de Washoe. Ele foi diagnosticado com leucemia mieloide aguda em 2014 e submetido a um transplante de medula em 2015. Alertado por seus colegas do Departamento de Medicina Forense sobre as mudanças esperadas em seu DNA, ele aceitou participar de um estudo para investigar em quais tecidos o novo genoma se manifestaria e em que proporção.

O estudo revelou, nas células do sangue, que houve uma substituição do DNA original de Chris pelo genoma do doador, o que é esperado e desejável. O transplante é feito para mudar a matriz das células de defesa do organismo, porém, especificamente neste caso, o acompanhamento feito por quatro anos recentemente revelou que a transformação estava indo além dos padrões habituais, e o genoma do doador teria alcançado tecidos onde, em teoria, jamais deveria chegar, como amostras de saliva, de células da bochecha e do líquido seminal. Segundo os pesquisadores, as células do sêmen de Chris haviam sido totalmente substituídas pelas do doador, um jovem alemão.

“Ficamos chocados com o fato de Chris não estar mais presente”, disse Darby Stienmetz, criminalista do escritório do xerife do condado de Washoe, ao jornal norte-americano The Independent.

A história de Chris Long

Em 2014, Chris treinava para correr uma meia-maratona quando começou a sentir dificuldades respiratórias. Ele foi internado com pneumonia e submetido a diversos exames. Os médicos notaram alterações na contagem de células sanguíneas e continuaram a fazer exames de sangue por oito semanas em busca de uma explicação. Sem respostas, os médicos solicitaram uma biópsia da medula óssea, com a finalidade de descartar outros problemas. Chris foi então diagnosticado com leucemia mieloide aguda, mas a doença ainda não havia chegado à corrente sanguínea, segundo informaram especialistas à época.

Ele passou por seis rodadas de quimioterapia e foi submetido a um transplante de medula óssea proveniente de um doador encontrado por meio do site Be The Match, o maior e mais diversificado registro de doadores medula óssea dos Estados Unidos. As informações dos doadores não são compartilhadas com os receptores até que eles tenham sobrevivido por pelo menos dois anos após o transplante.

Chris fez o procedimento em março de 2015 e 18 dias após o transplante já estava em casa. Nos 30 dias seguintes, ele foi monitorado diariamente, e fez diversos exames e transfusões sanguíneas. Como era esperado, o perfil do DNA no sangue de Chris começou a se transformar quase imediatamente após o transplante. Quatro meses depois do procedimento, o perfil do DNA no sangue de Chris havia mudado completamente, assumindo as características do DNA do doador. Nos três anos seguintes ao transplante, o DNA do doador não foi detectado em amostras dos lábios e da língua de Chris. Nesse ano, a amostra indicou aproximadamente 34% de DNA do doador na saliva.

“Inicialmente, presumimos que lesões na cavidade oral ou nos lábios pudessem ter causado esses resultados. Talvez um pouco de sangue estivesse contido nas amostras bucais. A literatura adicional de pesquisa indicou que os glóbulos brancos na saliva provavelmente são a causa dessas misturas”, escreveram os autores.

Entretanto, o achado que mais surpreendeu os autores do estudo e a comunidade científica forense foi a detecção do perfil de DNA do doador no sêmen de Chris – e em elevada proporção. Segundo os autores, a amostra de sêmen indicou uma mistura com 64% do DNA do doador em 2015; 87% em 2016 e 100% em 2019. Os pesquisadores ainda buscam explicações para o fenômeno e continuam a pesquisá-lo.

Grandes quantidades de glóbulos brancos no líquido seminal geralmente indicam infecção ou questões de esterilidade, mas Chris tinha respondido bem ao transplante, e em 2015 seu organismo já tinha acolhido o novo DNA. Além disso, ele havia feito uma vasectomia antes do procedimento, após o nascimento do segundo filho.

Achados polêmicos

O objetivo dos cientistas forenses de Washoe com esse trabalho era aprofundar a investigação sobre a coleta de material genético em cenas de crime. Nos casos em que a vítima ou o criminoso passaram por transplante de medula, por exemplo, pode haver mais de um DNA nas amostras de sangue deixadas para trás. Seus achados recentes, se forem confirmados, podem complicar ainda mais as análises feitas pelos criminalistas das amostras recolhidas de vítimas e suspeitos de crimes. O fato de amostras bucais não corresponderem aos outros fluidos corporais, por exemplo, pode ter grandes implicações para determinar a existência de um ou mais suspeitos.

Após ler o relato de caso original feito pela equipe de Washoe, hematologistas e geneticistas entrevistados pelo Medscape afirmaram que os achados fogem do padrão esperado em casos de transplante de medula óssea e precisam ser mais investigados.

“Desconheço algum ser humano que tenha sofrido uma mudança no sêmen a partir de um transplante de medula. Parece-me muito difícil explicar esse processo do ponto de vista genético”, afirmou a Dra. Maria Isabel Achatz, oncogeneticista e coordenadora da Unidade de Oncogenética do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

De fato, a produção do sêmen não envolve células hematológicas e ocorre nos testículos por meiose. A Dra. Maria Isabel é autora de um artigo sobre uma quimera Li-Fraumeni. [2] Um menino de 12 anos tinha a mutação TP53, que caracteriza a síndrome genética Li-Fraumeni, apenas no tecido tumoral, mas ela não estava presente no tecido periférico, nem em amostras de sangue. A constatação foi de que o menino, já falecido à época do estudo, tinha a mutação apenas em parte de seus tecidos. A mutação TP53 eleva a chance de manifestar alguns tumores.

“Quando você faz um transplante de medula, modifica o DNA de todas as células hematopoiéticas, que são as células presentes na medula e no sangue. Nem sempre o genoma das células do sangue muda completamente, mas pode acontecer de a pessoa passar a ter 100% o genoma do doador. Há casos em que muda inclusive o grupo sanguíneo”, disse ao Medscape o Dr. Nelson Hamerschlak, hematologista e coordenador do Departamento de Hematologia e Transplante de Medula do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE). Em outros casos, especialmente nos transplantes realizados em pessoas mais velhas, a preparação pode ser feita com doses menores de quimioterapia simplesmente para o organismo aceitar a medula do doador.

“Nessas situações, forma-se uma quimera e, à medida que o tempo vai passando, normalmente resta apenas a medula do doador”, disse o especialista.

“Eu nunca vi a presença do DNA do doador no sêmen. Porque você não faz o transplante dessas células. O que pode ocorrer, e isso sim já vi acontecer, é a presença de células do sangue no esperma, a hemoespermia”, contou o hematologista, que já realizou aproximadamente 1.500 transplantes de medula no HIAE, onde atua nesta área desde 1987.

O Dr. Roberto Giugliani, médico geneticista e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) também acredita que o fenômeno precisa ser mais estudado.

“O sequenciamento genético consegue analisar uma mistura de todo o DNA presente no organismo, em alta quantidade, em vários líquidos corporais. Seria necessário visualizar em que tipo de células do sêmen esse DNA do doador está presente, o que demanda uma análise das células por alguma marcação especial.”

Ele reforçou que as células da medula se infiltrarem em todo o organismo “é uma situação muito extrema, mas não impossível de acontecer”.

“Não há evidências científicas para confirmar a alteração do DNA nas secreções, e não há mecanismo descrito ou proposto como hipótese dessa alteração”, disse ao Medscape a Dra. Yadira Berenice Melchor Vidal, médica geneticista e chefe da Unidade de Transplante de Medula Óssea do ABC Medical Center, no México.

Na literatura existente, tais alterações foram observadas apenas quando, por algum motivo (como feridas na pele ou nas mucosas), há uma mistura de sangue com essas secreções (sêmen ou saliva).

“Até agora, não constatamos essas mudanças. Por isso, é importante verificar se o paciente não tem nenhum distúrbio urológico que possa resultar em algum tipo de sangramento, o que, mesmo em quantidades ínfimas, pode contaminar a amostra”, disse a especialista.

Para a Dra. Yadira, o ideal seria realizar novas análises, desta vez coletando sêmen por punção, o que evitaria a contaminação com sangue. Ela salienta que, em termos práticos, a mudança de DNA de Chris não terá muito impacto em sua saúde, porém, ainda não se sabe se isso terá implicações futuras, afinal, a inter-relação entre os genes é uma área de estudo muito recente.

Fonte: Medscape

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