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“Quanto tempo de vida eu tenho?” Enfrentando a questão mais difícil da oncologia

“Quanto tempo de vida eu tenho?”

Trata-se de uma questão que deixa os pacientes emocionalmente abalados.

Mesmo com a ajuda de numerosas evidências e ferramentas de prognóstico on-line, as imunoterapias e os tratamentos direcionados tornaram essa questão muito difícil de responder. É aí que fazer um prognóstico se torna mais arte do que ciência, e exige uma abordagem cuidadosa, dando um passo de cada vez, de acordo com a experiência clínica e a intuição do médico.

Antes entenda o que o paciente quer saber e o que ele já sabe

A questão do prognóstico é “muito difícil de abordar com o paciente e com a família dele, por várias razões”, disse o Dr. David N. Korones, hemato-oncologista pediatra e médico de cuidados paliativos da University of Rochester Medical Center, nos Estados Unidos.

Ele explicou que na América do Norte e na Europa, “entre 5% e 20% dos pacientes não querem saber seu prognóstico quando são diagnosticados com uma doença grave. [1,2] A maioria quer saber o que há de errado, mas nem todo mundo quer saber quanto tempo de vida tem”. Dra. Jennifer Lycette

Isso pode ficar complicado caso os familiares tenham um interesse maior do que o paciente no prognóstico, disse a Dra. Jennifer Lycette, oncologista da CMH-OHSU Knight Cancer Collaborative, nos EUA.

“Eu não consigo dizer o número de vezes que estive em um quarto com alguém, particularmente um paciente mais velho com leucemia mieloide aguda, conversando sobre quimioterapia e algum membro da família perguntou: ‘qual é o prognóstico?’ Eu viro para o paciente e pergunto: ‘Você gostaria de saber?’ É sempre interessante fazer essa pergunta, porque às vezes os pacientes querem a informação, e outras vezes tenho a impressão que eles estão um pouco hesitantes em saber”.

A Dra. Jennifer acrescentou que o primeiro passo para o prognóstico é sentir o clima da sala e avaliar o que o paciente realmente quer saber.

Para o Dr. David, a conversa começa buscando descobrir o que os muitos médicos das subespecialidades consultados ao longo do caminho já disseram ao paciente sobre a possibilidade de cura da doença e quanto tempo de vida resta.

“Eu faço essa abordagem com muita cautela, porque essa é uma questão muito sensível”, disse o Dr. David. “E algumas vezes simplesmente não falo sobre isso, especialmente quando o paciente está agitado e desatento na primeira consulta”.

Ferramentas disponíveis para estabelecer um prognóstico

Uma vez determinada a disposição e o conhecimento do paciente, o médico pode pensar no prognóstico de fato. Para decidir exatamente qual é o prognóstico, muitos médicos dispõem de ferramentas on-line.

Por exemplo, a Dra. Jennifer aborda o prognóstico de maneiras diferentes, dependendo do paciente e da doença, mas, para ter alguma noção da estatística e dos dados disponíveis, ela consulta com frequência a seção de oncologia do UpToDate .

De acordo com o Dr. Daniel F. Chen, clínico geral e geriatra da Cambridge Health Alliance e preceptor clínico da Harvard Medical School, nos EUA, quando se trata dos vários modelos de prognóstico disponíveis, existem basicamente “dois sabores”.

O primeiro é a calculadora específica de doença. No caso de uma jovem com câncer de mama, por exemplo, a calculadora deve conter a gravidade da doença, a histologia e o grau de comprometimento linfonodal. A partir daí, pode-se estabelecer um prognóstico, “se o quadro se resumir ao câncer”, disse o Dr. Daniel. “O outro sabor de modelo de prognóstico que vejo por aí é mais global. Eu acho que este é mais relevante para as pessoas mais velhas, porque elas acumulam todos os tipos de doenças, em vários órgãos, além do câncer com o qual estão lidando.”

Um exemplo de modelo de prognóstico é a ferramenta ePrognosis , desenvolvida na University of California San Francisco. A partir da revisão de literatura, os autores criaram calculadoras e modelos de prognóstico que levam em consideração a carga global de doença para pessoas com muitas enfermidades.

“Por exemplo, eles têm um modelo para pacientes hospitalizados, no qual você pode buscar informações das diferentes doenças existentes no ambiente hospitalar”, explicou o Dr. Daniel. “Existem calculadoras específicas para pessoas internadas em instituições de longa permanência ou que recebem tratamento domiciliar. O ponto é que todos os aspectos são levados em consideração, inclusive a situação funcional do paciente.”

A Dra. Jennifer também recomendou as Geriatric Assessment Tools on-line, reunidas pelo Cancer Aging and Research Group. “Para os idosos, este website pode ser usado para gerar uma pontuação a partir das características do paciente, que informa se eles estão mais ou menos inclinados a se beneficiarem da quimioterapia em função das comorbidades que apresentam.”

Falhas no algoritmo

Mesmo com mais médicos usando essas ferramentas de prognóstico, é importante ressaltar suas importantes limitações.

Como a Dra. Jennifer observou, a maioria das ferramentas se baseia em dados acumulados de estudos publicados na década anterior. Consequentemente, as ferramentas não levam em conta tratamentos mais modernos, muitas vezes mais bem tolerados.

“Alguns de nossos bancos de dados tradicionais, e a maneira como agimos, não são necessariamente aplicáveis a todos, porque as imunoterapias são um tipo de terapia muito diferente”, disse ela.

Para esses casos, a Dra. Jennifer pode consultar os últimos ensaios clínicos. “Mesmo que seja apenas um único estudo, ainda nos dá uma ideia melhor de como esses pacientes estão se saindo em comparação com a década anterior, antes de termos tratamentos mais recentes”, disse ela.

O Dr. David também observou que a aplicação dos resultados de ensaios clínicos, que invariavelmente incluem participantes que não se enquadram no perfil típico do paciente é frequentemente feita de forma “bruta e rudimentar, não conduzida por dados”.

“Sabemos que as pessoas mais velhas, mais frágeis e com mais comorbidades geralmente não têm um resultado tão bom”, disse o Dr. David. Por exemplo, para um paciente de 80 anos com um glioblastoma, o médico poderia dizer: “como você está mais velho e por sabermos que pessoas mais velhas tendem a não se sair tão bem, me preocupo que seu tempo possa ser mais curto do que esses números que eu lhe disse”.

Então há a questão da capacidade de prognóstico variável para cânceres específicos.

De acordo com o Dr. Mikkael A. Sekeres, médico e diretor do Leukemia Program do Cleveland Clinic Taussig Cancer Institute, nos EUA, a síndrome mielodisplásica é um excelente exemplo desse enigma.

O Dr. Mikkael ressaltou que a ferramenta mais utilizada na síndrome mielodisplásica é o International Prognostic Scoring System, [3] “criado e validado em pacientes que nunca receberam uma gota de tratamento. Então, quase por definição, quando começamos a tratar os pacientes, a precisão desses sistemas prognósticos desmorona”.

Pessoas, não estatísticas

Independentemente da ferramenta usada, a maioria fornecerá duas informações: a chance de um paciente ser curado ou o tempo de vida restante se o câncer for incurável.

Esses números inevitavelmente se tornam o ponto focal para o paciente. O que é parte do problema, porque é difícil aplicar esses números a pessoa quando, como disse o Dr. David, “as pessoas são diferentes, e a doença se comporta de uma maneira levemente diferente em cada um”.

Para compensar essa falsa sensação de certeza, o Dr. David enfatiza para os pacientes que qualquer porcentagem é baseada em pessoas “que podem ter um quadro diferente, um tipo de doença ligeiramente diferente ou outra idade, por isso é muito difícil chegar a um número preciso”.

Então ele admite para os pacientes que os médicos não são muito bons em prever o futuro.

“Eu falo isso por dois motivos: um, porque é verdade e para prepará-los para o fato de que independentemente do que os médicos digam, trata-se apenas de uma estimativa. Mas o outro motivo é mostrar que eu sou humano e que estamos nisso juntos, que eu não sou infalível e não sou onisciente”.

O médico explicou ainda que qualquer prognóstico é um intervalo, e que o paciente deve “entender que às vezes as coisas acontecem de forma repentina, e o tempo pode ser ainda menor; ou às vezes erramos para o outro extremo e o paciente responde melhor do que esperávamos ao tratamento ou o câncer cresce mais devagar do que o esperado. Eu digo a eles que amo quando erramos desse jeito”.

A Dra. Jennifer disse que pode ser frustrante quando os pacientes se prendem a um número ou uma porcentagem. Ela relembrou uma conversa recente com uma jovem diagnosticada com doença em estágio IV.

“Ela, como a maioria das pessoas, leu todas essas coisas tristes, e eu lhe disse que achava que ela tinha uma boa chance de se sair muito melhor do que aquilo, porque os números estão desatualizados e ela faria imunoterapia. Ela disse para mim: “Acho que entendo o que você está dizendo: esta é uma área realmente cinzenta, mas eu sou uma pessoa do tipo preto e branco, então isso vai ser muito difícil para mim”.

O Dr. Daniel salientou que ao falar com pacientes, abordar essa incerteza antecipadamente é crucial. “Não seremos capazes de especificar exatamente o que significa essa incerteza, mas desde que seja comunicada, se torna parte do processo de tomar uma decisão informado, que deve ser auxiliado pelos oncologistas e outros médicos.”

Quando dar um prognóstico

Uma vez que o médico chega ao prognóstico do paciente, a questão passa a ser quando comunicá-lo. O primeiro determinante aqui é o tipo de câncer que está sendo tratado.

O Dr. Mikkael disse que, para os pacientes com leucemia mieloide aguda, “temos que falar sobre o prognóstico no começo, porque introduzimos a ideiade uma mortalidade substancial relacionada ao tratamento quimioterápico intensivo. Eu estaria prestando um desserviço aos meus pacientes se não falasse com eles sobre a possibilidade de eles morrerem pelo tratamento que estamos prestes a começar, e parte disso é falar sobre o prognóstico em longo prazo ou sobre os benefícios em longo prazo”.

Por outro lado, para os pacientes com síndrome mielodisplásica, o momento depende da gravidade da doença e do quanto o paciente já sabe.

“Se alguém chega ao meu consultório previamente informado de que tem uma doença sanguínea mas sem o conhecimento de que tem uma síndrome mielodisplásica grave, em que a sobrevida média pode ser inferior a um ano, precisamos falar sobre isso na primeira consulta”, disse o Dr. Mikkael.

“Para alguém com uma síndrome mielodisplásica de baixo risco não foco tanto no prognóstico inicialmente”.

Essa abordagem foi sugerida pelo Dr. Daniel, que disse tentar, no caso dos pacientes com doença em estágio IV, dar o prognóstico e o diagnóstico simultaneamente.

“Eu acho que não posso, em sã consciência, conversar com eles sobre tomar decisões sem falar sobre o prognóstico nesse estágio da doença”, disse ele, acrescentando que, para o estágio inicial da doença, ele dedicaria menos tempo a isso.

Também pode ser apropriado voltar à conversa sobre o prognóstico mais adiante.

“No meu mundo do câncer”, disse o Dr. David, “falamos sobre o prognóstico no começo e depois no momento da recaída, ou se acontecer uma toxicidade inesperada pelo tratamento que limite a terapia que temos a oferecer”. Não é como planejamos isso, mas acho que a principal abordagem é não exagerar. Encontre algum equilíbrio e momentos estratégicos para rediscutir o prognóstico. Além disso, ouça o paciente e a família e avalie-os periodicamente para ver se isso é algo que eles desejam rediscutir.

A Dra. Jennifer disse que às vezes ela tem uma conversa muito cautelosa com o paciente, porque ela tem em mente que o prognóstico não deve ser muito bom; “então o paciente nos surpreende e se sai muito bem. Isso, claro, é sempre o melhor cenário. Então você vê o oposto também: às vezes tudo indica que alguém vai se sair bem, mas isso não acontece.

Ponderar os dados disponíveis e o contato frente a frente com os pacientes é o que poderia ser chamado de a arte de desenvolver um prognóstico oncológico, uma capacidade que melhora com a experiência.

A Dra. Jennifer disse: “Há um conhecimento médico adquirido, de que não existe uma fórmula, mas certamente há uma noção da condição do paciente e da sua capacidade de tolerar ou não o tratamento com base em como vimos as pessoas se saindo no passado. É difícil descrever, mas é algo que aprendemos quando passamos pelo treinamento em oncologia e acumulamos anos de prática.”

Nesse sentido, quando se trata de responder à pergunta sobre quanto tempo um paciente tem, talvez o guia mais útil seja quanto tempo o médico tem de experiência.

Artigo publicado originalmente no Medscape.

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