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Publicadas diretrizes que orientam condutas com usuários de Cannabis

A maconha é a droga ilícita mais consumida no mundo. Dois artigos recém-publicados de autores brasileiros resumem os riscos desta droga para a saúde e apresentam recomendações para que os usuários reduzam os riscos de danos associados às diversas formas de consumo da Cannabis de forma eficaz.

“O trabalho é um instrumento que embasa a prática clínica, coloca os problemas em perspectiva e aproxima as pessoas do conhecimento para discutir o tratamento com o paciente”, disse ao Medscape um dos autores das diretrizes Lower Risk Cannabis Use Guidelines to Brazil, [1] Dr. Marcelo Ribeiro, professor de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod), ambos em São Paulo.

Dr. Marcelo Ribeiro

A preocupação do Dr. José Miguel Chatkin, presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), que fez uma revisão rigorosa sobre asma e alergias associadas ao consumo de Cannabis[2] foi avaliar as doenças respiratórias que podem ser causadas pela maconha.

“A maconha e as outras drogas estão sendo preparadas artificialmente com uma capacidade progressivamente maior de induzir à dependência, portanto, precisamos capacitar o maior número de clínicos, médicos de adolescentes e pediatras”, acrescentou o Dr. José Miguel, que também é professor titular de medicina interna e de pneumologia na Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

As diretrizes buscaram se afastar da premissa que a abstinência é boa e o uso é ruim, a fim de oferecer uma aproximação pragmática de prevenção que pretende reduzir os riscos e danos entre os usuários. Publicado em junho de 2017 no Canadá, recentemente o artigo foi traduzido para o português e publicado no periódico Brazilian Journal of Psychiatry. A revisão sistemática e o consenso de especialistas foram resumidos em 10 recomendações – já adotadas por diferentes serviços de saúde canadenses.

“A questão da maconha é complexa. Para além da ideia de proibição ou legalização, na minha opinião, este guia é um instrumento clínico. Hoje, a distância do profissional de saúde das questões relacionadas com o consumo de substâncias ilícitas o faz perder oportunidades de discutir questões muito objetivas com os pacientes, e o artigo oferece parâmetros para alguém que não é da área se sentir à vontade de fazer perguntas”, disse o Dr. Marcelo.

“Se o guia recomenda que o uso recreacional se limite a vez por semana, você passa a ter uma referência, porque alguns pacientes atendidos no consultório fumam um, dois, cinco baseados por dia, e o guia orienta as pessoas sobre o fato de que fumar cinco baseados por dia é muita coisa.”

A publicação também oferece uma maneira de atualizar o conhecimento. “Há 10 anos, por falta de estudos, achava-se que a maconha não estava relacionada com acidentes de trânsito, agora sabe-se que está”, comentou o Dr. Marcelo.

“Se acreditava que a maconha não causava dependência, agora os estudos mostram que de 25% a 30% dos usuários frequentes desenvolvem dependência.”

A primeira recomendação informa que a maneira mais eficaz de evitar qualquer dano relacionado com o uso de Cannabis é se abster do uso, e que a maconha é comprovadamente nociva para a saúde.

De forma geral, a carga de doença associada ao uso de Cannabis é menor do que a de algumas drogas lícitas, como álcool ou tabaco, mas o consumo da droga foi relacionado com alterações da memória, perda de controle psicomotor, comprometimento cognitivo, alucinações, sintomas psicóticos e aumento do risco de esquizofrenia e de depressão. O consumo de Cannabistambém foi associado a um aumento de acidentes de trânsito, a casos de infertilidade e de deterioração da saúde cardiovascular, além de causar dependência. [1]

As diretrizes canadenses recomendam algumas ações incompatíveis com a realidade brasileira, por exemplo, propõem substituir o fumo de produtos de qualidade desconhecida ou baixa por alternativas “mais seguras” que não estão disponíveis ou são ilegais. Mas, os autores declararam que o objetivo é provocar o debate, porque, para o Brasil seria necessária uma adaptação sociocultural.

“Uma versão brasileira deveria incluir a prevenção de danos relacionada com a violência no contexto do mercado ilegal”, disse o artigo. “Essa inclusão foi ideia do Dr. Benedikt Fischer (líder do estudo)”, relatou o Dr. Marcelo.

Recomendações

  1. A maneira mais eficaz de evitar qualquer dano relativo ao uso de Cannabis é se abster do uso. Aqueles que decidam usar devem reconhecer que estão propensos a uma variedade de riscos de saúde e sociais, que podem ser tanto agudos como de longa duração. Estes riscos variam em probabilidade e gravidade, de acordo com características do usuário, padrões de uso e qualidade do produto. Portanto, podem não ser os mesmos de usuário para usuário, ou entre um uso e outro.

  2. O início precoce do uso de Cannabis (antes dos 16 anos) está associado a múltiplos efeitos adversos tanto de saúde quanto sociais na vida adulta jovem. Esses efeitos são particularmente pronunciados entre usuários de início precoce que também adotam um padrão de consumo intensivo e frequente. As mensagens de prevenção devem enfatizar que, quanto mais tarde for iniciado o uso, menores serão os riscos de efeitos adversos para saúde e bem-estar geral do usuário ao longo de sua vida. Grau de evidência: Substancial.

  3. Os produtos com alto teor de tetrahidrocanabinol (THC) estão geralmente associados a maiores riscos de diversos problemas (agudos e crônicos) mentais e comportamentais. Os usuários devem conhecer a natureza e a composição o dos produtos de Cannabisque utilizam e, idealmente, utilizar produtos com baixo teor de THC. Dada a evidência dos efeitos atenuantes do canabidiol (CBD) em alguns desfechos relacionados ao THC, é aconselhável o uso de Cannabis que contenha uma maior proporção de CBD em relação a THC. Grau de Evidência: Substancial.

  4. Revisões recentes sobre canabinoides sintéticos indicam efeitos adversos à saúde acentuadamente mais graves e agudos relacionados ao uso desses produtos (incluindo casos de morte). O uso desses produtos deve ser evitado. Grau de evidência: Limitado.

  5. A inalação regular de fumaça da combustão de Cannabis afeta adversamente à saúde respiratória. Embora os métodos alternativos de consumo tenham seus próprios riscos, é preferível evitar vias de administração o que envolvam inalar a fumaça da combustão de Cannabis (por exemplo, utilizando vaporizadores ou comestíveis). O uso de comestíveis elimina os riscos respiratórios, mas o início tardio do efeito psicoativo pode influenciar o consumo de doses maiores do que as pretendidas e, consequentemente, aumentar os efeitos adversos (principalmente agudos, por exemplo, devidos a alterações sensoriais). Grau de evidência: Substancial.

  6. Os usuários devem evitar práticas como ”inalação profunda”, retenção da respiração ou a manobra de Valsalva utilizadas para aumentar a absorção de ingredientes psicoativos ao fumar Cannabis, pois essas práticas aumentam desproporcionalmente a exposição do sistema pulmonar a produtos tóxicos. Grau de evidência: Limitado.

  7. O uso frequente ou intensivo (por exemplo, diário ou quase diário) de Cannabis está fortemente associado a riscos mais elevados de desfechos adversos de saúde e sociais relacionados com o consumo. Os usuários devem estar atentos e vigilantes para que seu uso de Cannabis – e o de seus amigos, pares ou colegas usuários – permaneça, no máximo, ocasional (por exemplo, usar apenas um dia por semana, somente no fim de semana, etc.). Grau de evidência: Substancial.

  8. Dirigir veículos sob o efeito de Cannabis está associado a um risco aumentado de envolvimento em acidentes de trânsito. Recomenda-se que usuários evitem sempre dirigir veículos (ou operar máquinas) pelo menos por seis horas após o uso. Esse tempo de espera pode precisar ser maior, dependendo de características do usuário e das propriedades específicas do produto usado. O uso combinado de Cannabis e álcool potencializa as alterações sensoriais, aumentando os riscos para a direção de veículos, devendo sempre ser evitado. Grau de evidência: Substancial.

  9. Algumas populações têm um risco potencialmente maior de efeitos adversos e por isso devem abster-se do uso de Cannabis. Estas incluem indivíduos com predisposição o para (ou histórico de familiares de primeiro grau com) transtornos psicóticos e dependência química, assim como grávidas (principalmente para evitar efeitos adversos ao feto ou recém-nascido). Grau de evidência: Substancial.

  10. Embora os dados sejam escassos, é provável que a combinação de alguns dos fatores de riscos comportamentais descritos acima aumente a possibilidade de ocorrerem efeitos adversos relacionados ao uso de Cannabis. Por exemplo, o uso precoce envolvendo uso frequente de Cannabis de alta potência provavelmente aumentará os riscos de o usuário sofrer problemas agudos ou crônicos. A combinação desses padrões de uso de alto risco deve ser evitada pelo usuário, e deve haver um foco na prevenção. Grau de evidência: Limitado.

Fonte: Fischer B, Malta M, Messas G, Ribeiro M. Introducing the evidence-based population health tool of the Lower Risk Cannabis Use Guidelines to Brazil. Braz J Psychiatry. 2019.

Doenças respiratórias

A relação entre inalação de Cannabis, asma e alergia é complexa. Muitos anos atrás, pelo seu efeito broncodilatador suave, usava-se Cannabis para tratar os sintomas da asma. Pesquisas mais recentes mostraram, pelo contrário, associação entre inalação de Cannabis e piora nos sintomas, exacerbações mais frequentes, e início de novos sintomas compatíveis com asma. [2]

“O que sabemos é que o usuário de maconha apresenta sintomas respiratórios, tosse, produção de escarro, chiado no peito, falta de ar, que não acontecem em pessoas que não fumam maconha. Estes sintomas têm uma relação direta com a quantidade de cigarros fumados com o tempo de uso. Mas, se a pessoa para de fumar maconha, em pouco tempo – em torno de uma ou duas semanas – os sintomas desaparecem completamente”, resumiu o Dr. José Miguel.

Dr. José Miguel e colaboradores da PUCRS, McMaster University e University of Toronto, ambas no Canadá, recomendam considerar a Cannabis como um fator precipitante da asma aguda e de ataques alérgicos, e que os pacientes com asma alérgica sejam orientados sobre os riscos individuais, não apenas por fumar, como os possíveis danos da exposição secundária à fumaça, uso precoce, e armazenamento inseguro.

As recomendações são provenientes da revisão de bibliografia publicada em inglês, espanhol e português que mostrou que os usuários têm taxas mais altas de exacerbação da asma e de outras doenças respiratórias e alérgicas, e não alcançam o controle esperado da doença, além de buscarem atendimento nos serviços de emergência com mais frequência do que os pacientes com asma que não usam Cannabis.

As pesquisas podem apresentar desvios, reconhecem os autores da revisão publicada no periódico Clinical Reviews in Allergy & Immunology, mesmo assim eles recomendam que todos os indivíduos com qualquer forma de hiper-reatividade bronquial devem evitar fumar maconha. [2]

Maconha versus tabaco

A comparação da maconha com o tabaco faz parte das perguntas que os pacientes geralmente fazem aos especialistas. “Assim como a folha do tabaco, a folha de maconha tem uma grande quantidade de substâncias que podem causar câncer de pulmão, garganta e/ou traqueia. A biodisponibilidade dos componentes da Cannabis é bastante heterogênea, dependendo da profundidade da inalação e do período de apneia, entre outros fatores. A maconha é fumada sem filtros e com fumaça em temperaturas mais elevadas do que o tabaco e, comparado aos usuários de tabaco, os usuários de Cannabis inalam volumes maiores e mais profundamente, e executam uma manobra de Valsalva prolongada. A consequência desta manobra é que a retenção de alcatrão e monóxido de carbono é três e cinco vezes maior, respectivamente, do que ao fumar tabaco.

A frequência de uso também é diferente entre o tabaco e a Cannabis. A vida média dos componentes psicoativos da maconha é muito longa, provavelmente por causa do depósito na gordura corporal. Logo após o consumo, em 4 min a 10 min ocorre um pico inicial na concentração, enquanto os efeitos psicotrópicos mais significativos duram até três horas. [2]

Um outro problema da avaliação dos riscos é que o cigarro de maconha é feito artesanalmente, não é padronizado, o que dificulta a comparação. “Mas, independentemente disso tudo, a possibilidade de doença respiratória relacionada com a inalação da folha da maconha é muito lógica e provável, e há indícios muito fortes de que inalar maconha cobra um preço muito alto da saúde respiratória”, disse o Dr. José Miguel.

Os dois especialistas consultados concordam que toda a comunidade médica precisa saber como lidar com a cessação do uso de Cannabis. “Se fala muito pouco de dependência química hoje no Brasil. Na graduação o tema ocupa poucas semanas, e os profissionais as vezes têm uma grande paixão ideológica. Mas é uma questão de saúde pública, o médico deveria falar mais, perguntar mais”, disse o Dr. Marcelo, acrescentando que para a cessação não existe consenso, tratamento farmacológico, nem modelo de psicoterapia.

“Quando o paciente vai ao consultório para tentar parar de fumar tabaco, este é o momento de perguntar se ele usa maconha e outras drogas”, acredita o Dr. José Miguel, “mas às vezes a gente sente que as respostas não são confiáveis. O médico só consegue entender bem o funcionamento de cada usuário depois de três ou quatro consultas, porque os pacientes omitem muito isso”.

“O pediatra precisa fazer a pergunta a partir do início da adolescência, agindo com naturalidade”, recomenda o Dr. Marcelo. Na experiência do Dr. José Miguel, “precisamos solicitar que o acompanhante do adolescente aguarde na sala de espera, e a confiança só vai se estabelecer depois de duas ou três sessões”.

Cada idade, época e região tem um risco diferenciado. O uso diário de Cannabis de alta potência, amplamente disponível na Europa mas que, segundo o Dr. Marcelo está disponível no Brasil, já foi associado com um impacto na saúde mental. De forma geral, a Cannabis consumida nos anos 60 e 70 tinha uma concentração menor de THC (1% a 2%). Hoje, em amostras colhidas no Japão, por exemplo, chega a 22,6%. O haxixe, outra alternativa de consumo presente no mercado ilegal, pode conter de 5 a 10 vezes mais THC por peso do que a maconha. [2]

Uma das perguntas sem resposta é se o consumo de Cannabis por meio de cigarros eletrônicos pode mitigar os efeitos nos pulmões. [2] Pode até ser o contrário. Nos Estados Unidos, os Centers for Disease Control and Prevention(CDC) está investigando quase 100 possíveis casos de doença pulmonar grave – alguns exigindo ventilação mecânica – ligada ao o uso do cigarro eletrônico que, em muitos casos continha THC [3].

“Agora, com a legalização nos Estados Unidos, as pessoas voltam de viagem com um cigarro eletrônico com maconha. É um consumo bem elitizado ainda, mas já chegou no Brasil”, alertou o Dr. Marcelo.

Fonte: Medscape

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