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Nossa afeição pelo álcool pode ter vindo dos ancestrais, há mais de 10 milhões de anos; veja o que diz a ciência

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Frutas muito maduras caídas no chão, ligeiramente inchadas, um pouco moles, cheirosas… e levemente alcoólicas. Era isso que nossos ancestrais da linhagem dos hominoides, hoje representada pelos grandes macacos e pelo ser humano, frequentemente encontravam nas florestas tropicais da África. E esse gostinho de etanol, eles adoravam.


Segundo a hipótese do “macaco bêbado” (Drunken Monkey), formulada por Robert Dudley já no ano 2000, o consumo de etanol pelos humanos não viria de uma degeneração cultural moderna, mas sim de uma antiga pressão evolutiva. Milhões de anos antes de o homem inventar a agricultura e a fermentação, nossos ancestrais frugívoros já seriam apreciadores de frutos naturalmente fermentados. E a transição do alto das árvores para o chão, com a coleta de frutas caídas, teria acelerado essa evolução.


Uma mutação que muda tudo


Um estudo publicado em 2014 relata que, há cerca de 10 milhões de anos, uma mutação na enzima ADH4 (álcool-desidrogenase) permitiu a nossos ancestrais metabolizar o etanol 40 vezes mais eficientemente. Essa adaptação ocorreu justamente nos ancestrais da linhagem dos hominoides (ancestral comum de humanos, chimpanzés e gorilas, mas não dos orangotangos).


Por quê? Porque os orangotangos viviam nas copas das árvores, onde os frutos não fermentam tanto quanto no solo. Já os ancestrais dos chimpanzés e gorilas desciam com frequência para recolher frutas caídas, mais suscetíveis de fermentação pela ação natural das leveduras. Ter acesso a muitos frutos fermentados e, ao mesmo tempo, ser capaz de degradar o álcool tornou-se então uma vantagem evolutiva, e essa mutação passou a representar um “ganho de função” que permitia encontrar com mais facilidade alimentos ricos em calorias.


Da mesma forma que a mutação da ADH ajudou os primatas a se adaptarem e melhorarem sua dieta, o ser humano também se adaptou mais recentemente com mutações em outra enzima, a ALDH, que decompõe o acetaldeído (produto tóxico da degradação do álcool, responsável por reações de intolerância como vermelhidão no rosto, taquicardia e náusea) em acetato (não tóxico). Essa reação de intolerância ao álcool teria como função nos proteger do consumo da substância — que, com seu metabólito, pode causar graves danos à saúde.


O etanol como mapa do tesouro olfativo


O etanol liberado pelos frutos fermentados não se percebe somente de perto. Ele se difunde à distância e servia provavelmente de sinal olfativo para os primatas localizarem recursos energéticos ricos em açúcar.


O etanol está amplamente presente na natureza, principalmente devido à fermentação dos açúcares das frutas pelas leveduras. Um estudo relatou concentrações de álcool em diferentes frutas ainda não caídas, mas já excessivamente maduras. O nível varia conforme a espécie e o ambiente: traços (0,02–0,9%) foram detectados em frutas de regiões temperadas e subtropicais, como a sorveira, a figueira sicômoro e a tamareira; já em áreas tropicais úmidas, especialmente favoráveis à fermentação, foram observadas concentrações bem mais altas (até 10% em certos frutos de palmeira no Panamá). Embora a maioria das frutas apresente níveis baixos (<0,2% em média), o consumo repetido pode representar uma fonte significativa de etanol para os animais frugívoros.


Essa produção natural de álcool faz parte de uma relação complexa entre plantas, leveduras e animais: os frutos oferecem açúcares, as leveduras colonizam e fermentam, e os animais atraídos ajudam a dispersar tanto as sementes quanto os esporos das leveduras — um verdadeiro exemplo de “mutualismo ecológico”.


Há inúmeras anedotas sobre animais que teriam ficado “bêbados” ao consumir frutas fermentadas… Elefantes e babuínos na África com a marula, ou ainda um alce na Suécia que ficou preso em uma árvore após comer maçãs fermentadas. Porém, esses relatos raramente são cientificamente comprovados: quase nunca se mede a concentração de etanol dos frutos ou a presença de álcool (ou de seus metabólitos) nos animais. Por outro lado, sabe-se que alguns mamíferos, como os macacos-verdes introduzidos no Caribe, não hesitam em roubar e beber coquetéis de frutas alcoólicos deixados sem vigilância por turistas nas praias de Saint Kitts.


Um estudo relata que chimpanzés de Bossou, na Guiné, utilizam folhas enroladas como “esponjas” para beber seiva de palmeira fermentada contendo até 6% de etanol.


E não se trata de “beber às escondidas”: eles bebem em grupo, passam as folhas uns para os outros, quase como em um aperitivo comunitário. O que nos leva a repensar a relação entre álcool e laço social. A prática de coletar frutos fermentados e alcoólicos no chão já era, portanto, uma motivação social. Nós não inventamos nada.


Hoje, o álcool corre solto, mas nossas enzimas não acompanharam


A evolução nos deu um fígado capaz de degradar cerca de 7 g de etanol por hora. Isso é pouco diante dos coquetéis modernos. Antigamente, o volume ingerido era naturalmente limitado pelo que cabia… no estômago de um macaco cheio de frutas. Hoje, podemos beber dezenas de gramas em apenas alguns goles de bebidas destiladas. Um shot de uísque ou outra bebida de 40°, com somente 3 cl, já contém 10 g de álcool.


Não surpreende, portanto, que tenhamos de lidar com o problema do consumo excessivo e do alcoolismo, que trazem consequências graves para a saúde e a sociedade. Fala-se de “descompasso” e de “ressaca evolutiva”. As mutações dos genes ADH e ALDH ainda não permitiram que nossa espécie enfrentasse os efeitos nocivos da ingestão excessiva de álcool.


Para concluir, o nosso instinto de beber é antigo, mas os riscos são novos.

Nosso fascínio pelo álcool não é uma anomalia moderna. É um legado evolutivo, um “bug” herdado da época das florestas úmidas, quando etanol significava calorias e sobrevivência. Mas em um mundo onde as bebidas alcoólicas são concentradas, acessíveis e onipresentes, o que antes era uma vantagem tornou-se um fator de risco para nossa saúde — e um desafio prioritário de saúde pública.


Fonte: O Globo

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