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“Meu filho não me reconheceu”: a vida sem raízes dos médicos em formação

Relato do Dr. Benjamin Mazer

Meu colega Sean (que pediu para ser identificado apenas por seu primeiro nome) é como muitos médicos residentes que conheço; se importa muito com a própria formação. Ele quer aproveitar as melhores oportunidades que surgirem, mas, em sua leitura, o treinamento médico se estende infinitamente.

Depois de concluir a graduação em medicina, a especialização médica e o doutorado em Iowa, nos Estados Unidos, ele finalmente estava pronto para a residência. Mas também estava pronto para começar uma família com a esposa. Ela estava terminando o doutorado, também em Iowa, e o momento parecia bom.

“Nós achamos que ela teria concluído o curso quando eu começasse a residência”, disse Sean. “A gente saiu tentando vaga em todos os lugares, sem estabelecer limites geográficos.”

Infelizmente, a esposa de Sean não conseguiu terminar o doutorado dentro do previsto.

“Tudo em ciência e medicina é imprevisível”, ele disse. Isso colocou a família em uma situação que eu frequentemente observo na minha geração de médicos em formação: Sean precisou encarar um relacionamento à distância com a esposa e o filho recém-nascido.

“É realmente difícil ter um relacionamento com seu filho por Skype ou FaceTime”, contou. “Existem limitações de quantos dias de férias eu posso tirar. Eu não posso simplesmente pegar um voo para lá.”

Até ir ao aniversário do filho acabou sendo complicado demais durante o primeiro ano de residência. Ele planejou suas férias cuidadosamente, mas o bebê nasceu uma semana antes. Um estudante de medicina generoso, que se dispôs a segurar um telefone celular para ele, permitiu que Sean participasse virtualmente do aniversário. Por sorte, depois de cerca de um ano, a esposa pode se mudar para Connecticut, reunindo a família. No entanto, a transição também foi difícil.

“Mesmo depois que minha esposa e meu filho vieram, nas primeiras semanas meu filho não me reconhecia de fato”, disse Sean. “Ele não me deixava segurá-lo, achava que eu era um estranho.”

Estilo de vida nômade está implícito

A história de cada médico é única, mas deveríamos considerar as grandes implicações dessas decisões individuais. O constante movimento que a formação médica geralmente demanda tem efeitos abrangentes na força de trabalho do médico. Isso influencia nossas escolhas de vida mais íntimas, reduz o acesso e dificulta a diversidade. Existe uma discussão maior do que nunca sobre o burnout entre os médicos. Eu acredito que a itinerância seja um fator importante.

Um estilo de vida nômade é essencialmente inerente ao processo de se tornar um médico. A flexibilidade geográfica é necessária para contornar a grande competição para entrar em uma faculdade de medicina. Cerca de 40% dos estudantes atualmente se matriculam fora do próprio estado. A ruptura social é provavelmente pior do que esses números sugerem. Meus colegas de turma que vieram da cidade de Nova York para fazer faculdade no norte do estado, a seis horas de distância, de certa forma se mudaram para outro planeta.

As mudanças continuam na pós-graduação da residência e durante a especialização. Atualmente, os estudantes de medicina norte-americanos concorrem em média a 13 programas de residência. É um aumento de mais de 50% desde 2002. Nas cinco especialidades mais procuradas, hoje em dia os estudantes tentam vaga em mais de 60 programas de residência. Essas extensas listas de classificação significam que os estudantes são forçados a procurar oportunidades de aprendizado cada vez mais longe de casa.

“Todo mundo te incentiva a se inscrever em todas as instituições dos EUA a cada estágio do processo. Nós temos tão pouco controle que isso acaba sendo uma suposição velada da maioria das pessoas, de que você tem de se mudar”, disse a Dra. Grace Oliver, residente de medicina de família no Kansas.

“Eu sabia que a minha vida seria completamente diferente, e que eu estaria me mudando sozinha, provavelmente para uma cidade onde não conheceria ninguém.”

A maioria dos casais de médicos que eu conheço sacrificaram tempo, lugares e família por suas carreiras. Eu vi meus amigos e colegas escolherem parceiros amorosos que pudessem compreender e lidar com essa realidade. Geralmente, isso significa casar com outros médicos. Cerca de 40% dos médicos se casa com outro médico ou profissional da saúde. Embora essa tendência possa melhorar o entendimento interpessoal, ela também aumenta a complexidade das decisões sobre a formação. Um parceiro completa um mestrado desnecessário para que as datas de conclusão do curso se alinhem para que o casal entre na residência. Uma residente planeja a gestação de acordo com duas agendas de rodízios que competem entre si. Para que ambos consigam uma especialização, um assume uma vaga na Califórnia enquanto o outro vai para Nova York.

Efeito no acesso do paciente e na diversidade dos médicos

A mobilidade tem suas vantagens. Os estudantes se abrem para novas oportunidades e têm experiências que talvez nós não buscássemos vivenciar em outro contexto.

Mas também piora o problema da desigualdade de acesso do paciente ao tratamento. Os residentes não são distribuídos de acordo com a população de pacientes. Existem 77 residentes por 100.000 habitantes no estado de Nova York, comparado com menos de 2 por 100.000 habitantes em Montana, segundo um estudo publicado no periódico Health Affairs. Os médicos em formação estão se mudando para longe daqueles que mais precisam de assistência médica em vez de para perto.

A oportunidade de se capacitar como médico é um raro privilégio. Uma carreira lucrativa e satisfatória é o que está no final do túnel. Embora a maioria daqueles que aproveitam esta oportunidade já sejam “bem nascidos”, aprender a praticar medicina nunca é uma tarefa fácil.

Mas a transitoriedade e as despesas levam a um grupo de médicos menos diversificado. Existem evidências de que apesar do débito estudantil elevado, a medicina vem sendo procurada por um subconjunto de pessoas mais ricas, deixando a minoria menos favorecida sobrecarregada com a maior parte do débito. Aqueles sem suporte familiar geralmente utilizam fundos privados para pagar pelas entrevistas da residência e a realocação.

“Muitas pessoas se mudam sem itens como um sofá, realizam mais empréstimos a juros muito altos ou estouram o limite do cartão de crédito para conseguir vencer a eternidade entre o último pagamento do fundo estudantil em janeiro do último semestre da faculdade e o primeiro pagamento da residência, em junho ou julho”, disse a Dra. Grace. Para as especialidades mais procuradas, o número crescente de inscrições necessárias, assim como o alto custo de estágios de “teste”, aumenta mais as barreiras financeiras.

Aliviando a carga

Eu não quero dizer que a formação médica é a única que exige um estilo de vida itinerante. Do jornalista iniciante ao técnico de futebol assistente, muitos trabalhos demandam que os profissionais recém-formados se mudem. Na medida em que os médicos se tornam mais velhos e independentes, eles geralmente criam raízes em um lugar. Mas não podemos simplesmente ignorar os desafios de uma década ou mais de educação e treinamento.

Provavelmente não existe meio de eliminar completamente as mudanças que a formação médica exige, mas existem formas de aliviar a carga de viagens e seus custos associados.

Para começar, podemos deixar de confiar em rotações externas para selecionar residentes, especialmente para as especialidades mais procuradas. As faculdades de medicina podem fornecer mais flexibilidade para aqueles com dificuldade financeira ou situações pessoais para minimizar rotações longínquas. Programas de residência na mesma região poderiam coordenar agendas de entrevistas para permitir que os estudantes participem de várias entrevistas durante a mesma viagem. Hospitais poderiam liberar o primeiro pagamento antes que os graduandos tenham que pagar por suas despesas de mudança, reduzindo a necessidade de empréstimos pessoais para a realocação. Nós podemos melhorar as políticas de licença familiar, as quais as famílias de médico acreditam ser insuficientes.

As mudanças constantes inerentes ao atual modelo de educação médica dos EUA separam jovens médicos de suas famílias, pacientes e contextos sociais. Funcionando como uma barreira desnecessária à profissão. Nós podemos encontrar formas práticas de reduzir a necessidade de viagem e as associadas. Ao fazer isso, estaremos permitindo que estudantes provenientes de contextos menos privilegiados possam buscar a medicina, e melhorando a saúde mental e social dos jovens médicos.

Fonte: Medscape

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