Nutrientes indispensáveis para o funcionamento do corpo, as vitaminas têm sido alvo de diversos estudos que buscam identificar se a sua suplementação traria benefícios – ou não – à saúde. Praticamente um consenso até agora é que os compostos orgânicos não fazem diferença positiva para pessoas que não têm a falta deles. Porém, um novo estudo clínico conduzido por pesquisadores das universidades de Harvard e Columbia, nos Estados Unidos, sugere que pode, sim, haver melhoras em alguns casos.
Publicado na revista científica The American Journal of Clinical Nutrition, o trabalho aponta que tomar um suplemento multivitamínico diário pode melhorar a memória de idosos. Para chegar a essa conclusão, 3.562 pessoas com mais de 60 anos foram divididas aleatoriamente em dois grupos, em que parte recebeu um placebo e, os demais, a suplementação.
No entanto, ainda que o modelo de estudo randomizado – que divide voluntários em dois grupos e compara uma intervenção com um placebo – seja considerado “padrão ouro” para avaliar a eficácia de um tratamento, especialistas ouvidos pelo GLOBO explicam que as evidências ainda não são suficientes para que os médicos prescrevam suplementos com o objetivo de melhorar a memória.
— A procura de vitaminas para tentar melhorar a memória é algo que já temos há vários anos. Estamos numa fase ainda em que não se comprovou uma eficácia. O estudo pode ser um dos primeiros que apontem um benefício real, mas os resultados precisam ser replicados, comparados. Assim que se modifica uma prática clínica. Um trabalho isolado é apenas uma perspectiva, é assim que a ciência caminha — diz o neurologista do Núcleo de Excelência em Memória (Nemo) do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, Ivan Okamoto.
No estudo, a cada 12 meses, durante um período de três anos, os participantes realizaram testes cognitivos online, desenhados pelos pesquisadores para avaliar a memória. Ao fim do primeiro ano, já foi observada uma melhora – que foi sustentada no decorrer do resto do estudo. Segundo os cientistas responsáveis, a reversão foi equivalente a um declínio de aproximadamente três anos.
O teste clínico é o maior já feito sobre o tema, e é o segundo de um amplo estudo que busca avaliar a suplementação em diversos desfechos de saúde. O primeiro, publicado ano passado no The Journal of the Alzheimer's Association, já havia indicado o potencial para as lembranças de maneira inédita, porém em um grupo menor de idosos.
O novo trabalho recebeu financiamento dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH) e da Mars Edge, empresa de bem-estar que comercializa suplementos. A Haleon, fabricante do Centrum 50 + – multivitamínico utilizado no estudo – atuou apenas cedendo os produtos para os testes. Para Andres Zapata, líder médico da companhia no Brasil, os resultados são animadores. — Até então, tínhamos muitos estudos específicos sobre determinados minerais ou vitaminas, mas ainda não havia nenhum estudo sobre o uso de um multivitamínicos e minerais. Esse foi o primeiro deste tipo, e teve resultados espetaculares e muito valiosos para indivíduos e profissionais da saúde — diz.
Ele reconhece ser “natural da metodologia científica” que outros estudos sejam feitos. Mas, para o neurologista Raphael Spera, do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento (GNCC) do Hospital das Clínicas da USP, não é apenas uma questão de mais trabalhos, como também de correção de pontos negativos observados na pesquisa atual.
— O teste cognitivo utilizado é computadorizado, autoaplicável e foi criado para o estudo, não é um padrão consagrado hoje na literatura. E mesmo que o resultado seja lido como significativo, ele não pode ser extrapolado para a população, porque a grande maioria dos participantes são pessoas brancas, escolarizadas, com conhecimento sobre como mexer no computador — explica o especialista da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).
Ele diz ainda que não há plausibilidade científica para o excesso de vitaminas ter um efeito positivo. Existem hipóteses de que a reposição ajudaria a proteger algumas regiões do cérebro responsáveis pela consolidação da memória, mas essa teoria não tem comprovação ainda. — O que pode ocorrer é que o idoso muitas vezes tem mais limitações do que comer, o apetite diminui, e vários outros aspectos da vida levam ele a ter maior risco de deficiência nutricional no geral. Por isso é importante estar atento à alimentação, que consegue sozinha fornecer todos os nutrientes necessários. E quando estiver com dificuldade de suprir o adequado, pode se considerar o suplemento, mas tem que haver a deficiência comprovada — avalia o diretor do departamento de Diabetes Mellitus da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), Rodrigo Lamounier.
Entre as principais conclusões, o estudo também encontrou um benefício mais significativo para idosos com doenças cardiovasculares. Os especialistas afirmam que isso pode ser atribuído a um risco maior de perda cognitiva no grupo, o que leva qualquer possível desfecho positivo a chamar mais atenção.
— Ou talvez, por serem pessoas com mais problemas de saúde subjacentes, tenham uma pior alimentação, uma carência nutricional. Então o grupo de doenças cardiovasculares seria uma possibilidade de benefício, mas teria que se avaliar de uma forma mais aprofundada — acrescenta Spera. Riscos de hipervitaminose e o que de fato funciona Os médicos destacam que parte das vitaminas presentes nos suplementos é lipossolúvel, como a D e a K, e pode na realidade provocar quadros de hipervitaminoses quando em exagero que são danosos à saúde.
— Elas podem podem intoxicar. Existem outras que podem alterar resultado de exame de laboratório. E pode haver efeitos colaterais, interações com outros medicamentos. Nada é sem risco. Toda intervenção médica é pensada no benefício relativo ao risco e, na ausência de benefício, não vai haver indicação — afirma Lamounier.
Em relação ao que de fato tem uma sólida comprovação científica, os neurologistas esclarecem que a falta da vitamina B12 e do ácido fólico pode ter uma influência no cérebro. Por isso, avaliar os índices e sugerir uma reposição em caso de carência é uma conduta praticada hoje na clínica. Fora isso, para aqueles que querem garantir uma proteção cognitiva durante o envelhecimento, existem formas eficazes, mas que não envolvem uma “pílula mágica”.
— O que mais influencia são os hábitos de vida. Existe um grande estudo que mostra que, de cinco itens, aqueles que seguiram ao menos quatro durante dois anos foram muito melhores do que os demais. Muitos países que estão interessados em melhorar o envelhecimento da sua população adotaram os itens desse estudo como programa de governo — explica Okamoto.
Os pontos citados são do estudo Fingers, que avalia o impacto de medidas não farmacológicas em evitar o declínio cognitivo. Os cinco itens envolvem orientação nutricional, exercício físico, treino cognitivo (como jogos e outros idiomas), atividades sociais e gestão dos fatores de risco vasculares e metabólicos.
O neurologista do Einstein explica ainda que, durante o envelhecimento, não é a memória em si que é afetada, mas a capacidade de processamento do cérebro – o que afeta a velocidade com que o idoso consegue acessar as lembranças.
— O nível dos neurotransmissores vai caindo e você começa a ficar menos atento e com uma velocidade de processamento menor. O idoso, depois dos 60, 70, tem uma dificuldade maior de focar e desfocar, o que leva às queixas de memórias, como dificuldades de lembrar de nomes, datas. Mas isso faz parte do envelhecimento normal, ele consegue lembrar com algum esforço. A memória mesmo não é afetada — afirma.
Fonte: O Globo
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