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A resistência à vacina no Brasil Colônia quando o inimigo era a varíola


 
 

"Quem quiser comprar um cabra por nome João, 18 a 20 anos, barbeiro sangrador, fale com sua senhora na Rua da Quitanda”. Esse texto da venda de uma pessoa escravizada publicado em 22 de julho de 1820 na “Gazeta do Rio de Janeiro” revela mais do que a crueldade em tratar o ser humano como mercadoria. Ele aponta também um dos motivos para a população resistir à vacinação contra a varíola no início do século XIX, mostrando a aposta terapêutica na sangria, um método popular usado na época para deter diversas doenças.


O anúncio é um dos 9.211 publicados em 1.610 edições do periódico carioca. Todos foram lidos pelo jornalista e historiador brasileiro João Victor Pires, que lança no dia 26, de maneira independente, o livro “Classificados da Corte, o cotidiano do Rio de Janeiro joanino a partir dos anúncios de jornal”, já em pré-venda na Amazon.


O combate à epidemia com vacinação em massa já era um problema há 200 anos, como mostra o estudo inédito. Disseminados nas páginas do jornal, os classificados de escravizados barbeiros sangradores expõem a confiança na prática alternativa, dificultando a campanha e o trabalho dos médicos entre habitantes que creditavam suas moléstias ao castigo divino ou feitiço.


— A vacinação foi um desafio enorme nesse período. A relutância às novas práticas médicas pode ajudar a explicar uma certa rejeição à vacina da varíola. Muitos preferiam recorrer aos escravizados curandeiros para sanar suas enfermidades. Havia ainda o medo de contrair sífilis ao ser vacinado. A sífilis, junto com a varíola, representou um problema bastante disseminado no Rio de Janeiro, e os anúncios que vendiam remédios indicam isso — explica Pires, que vive em Lisboa.


A narrativa do historiador é bem documentada e sem margem para interpretações duvidosas. A sensação é a de estar com a própria “Gazeta” nas mãos. O rigor da apuração transporta o leitor para dentro do mapa da vacinação realizada entre 1811 e 1820 e publicado naquele dia.


Descobrimos que eram os escravizados a maioria dos vacinados. Não por ato humanitário, mas por simples manutenção do lucro escravagista, relata Pires.


— Não tinham escolha. Quase 64% dos vacinados entre 1811 e 1820 eram escravizados. Era importante porque ter escravizados morrendo por doença representava um prejuízo aos traficantes transatlânticos ou a quem os comprava. Havia ainda um consenso na época de que esse tráfico era o grande responsável pelo surgimento de epidemias de varíola na cidade — observa Pires.


Apoiado em bibliografia de outros autores para comprovar a massiva atuação de escravizados em tratamentos de cura da população, Pires escreve que a habilidade de barbeiro sangrador era destaque nos anúncios para facilitar a negociação. Embora o autor ressalte não ser possível garantir que toda a população acreditasse cegamente nos poderes dos curandeiros:


— Os anúncios de jornal não possibilitam afirmar isso. Mas é perfeitamente possível que sim, dado que os barbeiros ou curandeiros eram prestigiados. Basta notar os anúncios de jornal que informam o ofício do escravizado. Se escreviam isso, significa que poderia aumentar a possibilidade de interesse.


A “Gazeta” era vinculada ao governo e representava os interesses do Estado. No caso, a monarquia absolutista de D. João VI, que navegaria de volta a Lisboa em 26 de abril de 1821 após 13 anos no Rio. O periódico tentava explicar os benefícios da vacina, e era comum haver duelo de opiniões em suas páginas de classificados.


— Um médico inglês acusava que algumas vacinas não eram legítimas, defendendo o uso da que ele possuía. Hércules Muzzi, médico que trabalhou no serviço de vacinação, contestou o inglês num anúncio de 21 linhas. Disse que as febres e erupções eram “devido à influência do clima e constituições individuais”. Há claramente um debate sobre eficácia ou não da vacina, como se vê hoje — ressalta Pires.


O escritor levou cerca de 18 meses para ler todas as edições, entre 2018 e 2020, antes de publicar uma parte em sua tese de mestrado em História Moderna e Contemporânea no Instituto Universitário de Lisboa. Além de detectar os desafios médicos diante dos surtos de sífilis e varíola, a análise dos classificados joga luz sobre os principais aspectos comerciais da época, como o comércio de imóveis, escravizados e livros. Um dos pontos destacados foi o impacto da gentrificação em solo carioca devido à chegada da família real.


— O comércio de imóveis representou 20% dos anúncios, e o de livros, 12%. São dois aspectos acessíveis somente à elite. Os imóveis sofreram aumento notável de preços, fruto da chegada de muitos estrangeiros no rastro da família real, e os livros eram acessíveis apenas aos letrados, minoria na época— diz.


O mercado escravagista representava 16% dos anúncios, mas entre 1818 e 1820 já superavam os de imóveis. Os textos mostram que os escravizados foram obrigados a trabalhar em quase todas as atividades da cidade após serem capturados em Benguela, Cabinda e Luanda, cidades de Angola.


Além de trazer à tona o primeiro anúncio de fuga de uma pessoa escravizada, publicado em 7 de janeiro de 1809, Pires faz o levantamento de uma atividade paralela: o caçador de recompensas.

— Este tipo de captura virou negócio. Encontrei 26 anúncios de pagamento de recompensa. Calculei que pagavam em média 24 mil réis (cerca de R$ 2,2 mil) por capturado. É quatro vezes maior que o salário de um ajudante de cirurgia do Exército em 1809 — compara.


Fonte: O Globo

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