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"Quem me paga pelo paciente do SUS?", questiona comandante do HFA


 
 

No pior momento da pandemia do novo coronavírus no Brasil, hospitais militares estão sendo cobrados a ofertarem leitos de unidades de terapia intensiva (UTIs) a civis. Com atendimento limitado a militares e seus dependentes, a questão tem sido cobrada e acompanhada pela Defensoria Pública da União (DPU) e pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que apuram possíveis irregularidades relacionadas à não oferta ao público civil de leitos que estariam disponíveis durante o enfrentamento da covid-19.

A apuração ocorre desde meados de março. Este mês, a defensoria solicitou que a União concedesse à Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal (SES-DF) acesso à regulação dos leitos de UTIs e enfermarias dos hospitais militares no DF, a fim de que todas as pessoas que estivessem na fila pudessem ter direito aos leitos assim que vagassem, “obedecidos os critérios de prioridade previamente estabelecidos no âmbito” da secretaria.


Antes disso, a própria pasta solicitou vagas de UTIs ao Hospital das Forças Armadas (HFA), que tem mais leitos entre as quatro unidades militares do DF, mas o pedido foi negado, sob a justificativa de limite da capacidade técnica. Em entrevista ao Correio no último dia 8, o comandante Logístico do Hospital das Forças Armadas, o general Ricardo Rodrigues Canhaci, garantiu que não há leitos ociosos e que a unidade está no limite. Durante o mês de março, segundo ele, o hospital teve uma média de ocupação de leitos de UTIs de 95%. Na última sexta-feira, a unidade estava com a taxa de ocupação de UTIs de 90% (em um total de 40 leitos), nível considerado crítico, e com 56,7% dos 67 leitos de enfermaria ocupados, um percentual considerado normal.


“Ninguém está se negando a ajudar. A questão é que não tem leito”, disse Canhaci. De acordo com o comandante do HFA, mesmo que o atendimento não estivesse no limite no âmbito da covid-19, o hospital não poderia ofertar leitos ao Sistema Único de Saúde (SUS) no momento, porque precisaria retomar as cirurgias que estão represadas, em uma fila que só cresce. E ressaltou que, no HFA, não há convênio com o SUS. “Quem vai me pagar por esse paciente? E essa tabela do SUS é uma tabela inferior ao que eu vou receber do fundo de Saúde das Forças. Aí, como é que eu vou sustentar o hospital?”, questionou. Mesmo assim, destacou, isso “nunca foi e nunca será motivo” para negar vaga ao SUS. “O motivo é falta de leito pelo excesso de paciente”.


Os questionamentos em torno da oferta de leitos ao público geral se dão porque as unidades militares também recebem recursos da União, e o cenário é de crise sanitária nacional. No ano passado, hospitais vinculados às Forças Armadas ou ao Ministério da Defesa empenharam do orçamento R$ 1,95 bilhão, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU). A reportagem perguntou ao ministério valores repassados ao Hospital das Forças Armadas (HFA) via orçamento e para combate à covid-19, mas o dado não foi enviado. A pasta informou, apenas, que R$ 124,7 milhões foram direcionados pelo MD a esses hospitais para combate à doença.


Essas unidades têm regulamentação específica, com compromisso de atendimento dos militares, que podem se ferir em treinamentos, por exemplo. Comandante Logístico do Hospital das Forças Armadas, o general Ricardo Rodrigues Canhaci disse que os valores advindos do orçamento representam 45% dos recursos necessários para o sustento do hospital, e que os outros 55% são dos fundos das Forças, descontados do salário dos próprios servidores. No caso de lotação da unidade, o diretor explica que recorre a hospitais particulares conveniados (que são três em Brasília, para caso dos servidores do MD e do HFA).


Defensor público da União que atua na ação civil pública que pede compartilhamento de vagas dos hospitais militares do DF com a central de regulação da Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal (SES-DF), Alexandre Cabral sugeriu, na última sexta-feira, que o juiz marque uma audiência de conciliação no prazo de até 72 horas entre os envolvidos para que se chegue a uma solução. A sugestão se deu após resposta da União de que esses hospitais não possuem vagas para ofertar. De acordo com ele, o pedido de que as unidades atendam pacientes do SUS é extraordinário, para a situação emergencial que se vive.


Alexandre ressalta que, em tempos normais, isso não aconteceria, porque os hospitais militares não fazem parte do SUS, mas que, no momento, leitos de enfermaria ajudariam a rede do DF.


Para o defensor, apesar de a lógica do sistema dos hospitais militares ter uma razão de ser (de atendimento exclusivo a militares e seus dependentes), ela precisa ser suspensa momentaneamente. “Não é indefinidamente. Seria um período curto. Isso não vai acabar com o hospital militar, mas pode salvar vidas. Se salvar uma vida, já vale”, disse.


Entrevista / General Ricardo Rodrigues Canhaci / comandante Logístico do Hospital das Forças Armadas


Como está a unidade do HFA neste ano?

No final do ano passado, houve uma redução do número de casos da covid-19 em Brasília. Quando entramos em janeiro, eu realmente tinha leito de UTI sobrando. Aí, surgiu aquele problema (de falta de oxigênio) em Manaus e em Boa Vista, e começamos a receber pacientes dessas cidades. Passamos janeiro e fevereiro apoiando aquela crise, e ficamos lotados com pessoas de fora (de Brasília). Desde janeiro, estamos em uma ascendência. Em março, na primeira semana, levamos um susto, quando a média da UTI, que era de 65%, foi para 86% e me bateu um pico (maior número em um dia de internação) de 95%. E enfermaria, que estava em 46%, foi para 69%, e bateu um pico de 76%.


Aí, nessa primeira semana, no dia 7 de março, tive que tomar uma decisão muito difícil e parei as cirurgias eletivas. Estamos cortando na carne. Paramos as eletivas e as internações clínicas. Passamos a internar só os pacientes com covid-19. Isso foi muito ruim, porque eu tenho fila de espera de gente para fazer cirurgia. Alguns, a gente consegue encaminhar para rede privada (via convênio da unidade e dos fundos de saúde das Forças), mas, aí, a rede privada também ficou sobrecarregada e começou a recusar paciente sem covid. Então, se em algum momento houve a diminuição de pacientes com covid, eu tenho que retomar alguns leitos de UTI e enfermaria para pós-operatório e internação clínica.


Mas tem cirurgia que pode esperar, certo?

Mesmo as (cirurgias) eletivas têm limite de espera, tanto de dignidade humana quanto pelo risco de virar emergência. Então, o hospital não pode se afastar da missão de média e alta complexidades como se afastou nesse momento, desde 7 de março, e se afastou no ano passado entre julho e outubro. A gente espera que em algum momento diminua esse pico e eu possa voltar a atender média e alta complexidade. É minha obrigação.


Como funciona o sustento do hospital?

Nós temos os planos de saúde das Forças. Marinha, Exército e Aeronáutica, cada um tem um fundo de saúde, e quem sustenta é o próprio militar. Todo mês, é descontado do contracheque esse plano de saúde. E quando o militar ou o dependente é atendido, ele tem uma coparticipação de 20% do custo de qualquer atendimento. O atendimento não é gratuito para o militar e para o dependente dele. O fundo sustentado por eles paga, e ele paga 20% do procedimento. Fica essa ideia errada de que são privilegiados, porque é um hospital público e só eles podem usar. Não, na verdade, eles sustentam o hospital.


Mas tem recurso do governo federal também.

Tem, mas o militar tem direito à saúde a ser provida pelo Estado.


Assim como todo cidadão.

Exatamente. No caso do militar, tem uma legislação específica para isso. Como poderia acontecer: ele poderia receber o valor que a União destina anualmente para ele para saúde, e pagar um plano. Só que ele não recebe esse valor, vai para o orçamento e os hospitais militares recebem por meio do orçamento. No HFA, 45% do hospital são sustentados pelo orçamento, 55% são pelos fundos de saúde das Forças. O hospital não sobreviveria sem os fundos, pois tem uma participação de quase metade dos gastos e investimentos.


Como funciona o encaminhamento para a rede privada?

No caso de militares e dependentes, o fundo de saúde das Forças faz convênios com a rede privada. O hospital só tem que fazer (convênio) para atender os civis do Ministério da Defesa. Quando a gente não resolve o problema aqui, o fundo encaminha para um hospital privado. Só que a conta fica muito mais cara. Meu custo operacional aqui é baixo, porque eu não viso lucro. Às vezes, a pessoa fala assim: 'coloca aí um paciente do SUS'. Eu não tenho convênio com o SUS. Quem vai me pagar por esse paciente? E essa tabela do SUS é uma tabela inferior ao que eu vou receber do fundo de saúde das Forças. Aí como é que eu vou sustentar o hospital? Porque ele está dimensionado à essa realidade. A partir de 7 de março, fechamos atendimento de média e alta complexidades, passamos a atender só covid-19. Até que na última semana de março, nós chegamos ao pico de 100% de UTI ocupada, como já tínhamos chegado na terceira semana, e uma média de 95%.


Colocar civis na fila não é mesmo possível?

A demanda que eu tenho já me ocupa. O que a gente vai criar, na verdade, é uma falsa sensação de que está criando leito para o sistema, quando não está. O universo que atendemos já absorve as capacidades do hospital. No momento em que se teve uma queda de covid, eu tenho que atender as outras doenças que matam também. O hospital não foi criado para ser apenas covid. Hoje ele está só covid e está atendendo uma demanda enorme. Não tem ociosidade, tem sufoco da parte da gente. (O hospital) está trabalhando no limite, então, o que adianta entrar numa central reguladora? Não tem o que oferecer a essa central.


Mas se fosse esse o caso, se tivesse leito disponível, o senhor não acha problemático não atender aos pedidos, tendo em vista o país em colapso por causa da covid?

Salvamos milhares de vida aqui. Pessoas recuperadas que não sobrecarregaram o SUS. Estamos fazendo o que todos os hospitais estão fazendo: nos desdobrando, salvando vidas, não interessa qual. Agora, dentro de uma organização a gente tem um grupo de usuários que a gente tem obrigação de atender. E esse usuário tem direito à saúde como qualquer outro. Isso não é privilégio. As Forças Armadas estão ajudando o país na covid tremendamente. Transportando oxigênio, vacinação de índio, tudo que está podendo ajudar está sendo ajudado.


Os hospitais não estão se negando. Estão sem leito mesmo. Não se trata de não querer, se trata de não ter. Quem olha somente os números sem olhar a gestão hospitalar e do doente, não interpreta os números corretamente, não entende que se eu tenho 40 pacientes na enfermaria, com certeza 10% vão precisar de UTI. E são pacientes que já estão internados e estão na minha responsabilidade de tratamento. Não adianta querer vir um de fora, de paraquedas, e pegar aquele leito de UTI. Isso não é justo, porque eu tenho compromisso com o internado. Eu sou responsável pela vida dele.


Não existiria a possibilidade de fazer um convênio com o SUS devido ao momento de crise sanitária?

O hospital não faz convênio com o SUS porque não tem leitos disponíveis para isso. Se a gente tivesse 500 leitos, ótimo. O problema é que não tem. Nós chegamos no limite que a gente podia reformar e ampliar. Não consigo ter um leito a mais do que eu tenho hoje. E isso que eu tenho hoje está sendo absorvido pelos usuários com os quais eu já tenho compromisso de atender. E na medida que esses usuários são atendidos aqui, eles não estão sobrecarregando o SUS. Nós já estamos ajudando o SUS. Se eu tenho 80 pacientes internados, são 80 pacientes a menos no SUS.


O que amplia leito é investimento que a gente fez, mas chegamos no limite. Aí, o que eu vejo: quem tinha a obrigação de ampliar leitos talvez não tenha ampliado tudo que precisava e aí passa a colocar o foco em cima da gente, como se fôssemos resolver o problema do DF. Quando recebi o pedido da secretaria, expliquei a situação, mostrei como eu estava com 90% da UTI ocupada e 75% da enfermaria. Expliquei que gostaria de ajudar, mas eu não tenho leito. Se tivesse com 40%, aí tudo bem, porque tem uma margem de segurança razoável.


No caso da enfermaria, é preciso explicar que também é o caminho de volta de quem está na UTI, porque o paciente vai sair debilitado e não pode ir direto para a casa. Preciso olhar os pacientes que estão evoluindo bem e tenho que ter esse leito de enfermaria para eles, senão não gira a UTI. Não tem ociosidade. Tem estrutura de tratamento que foi sendo ampliada de acordo com o aumento do número de casos, ampliada com sacrifício do hospital. Eu pedi recursos humanos do Exército, Marinha e Aeronáutica e hoje, eu tenho 50 profissionais da saúde emprestados.


Se o senhor tivesse agora com leito disponível, o senhor estaria com as cirurgias de média e alta complexidade e, mesmo assim, não daria para atender os pedidos da secretaria?

Não daria, porque eu teria que voltar o tratamento de média e alta complexidade, que é um problema sério. É uma obrigação que eu tenho que cumprir.


Fonte: Correio Braziliense

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