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Médico carioca que atua em NY vê melhora por lá, mas teme pelo Rio: ‘pode chegar ao colapso&#8

Na linha de frente de um dos maiores hospitais de Nova York, epicentro da Covid-19 no mundo, o médico carioca João Daniel Fontes, de 38 anos, conta que começou a sentir a queda no número de internações no fim de abril.

Apesar de só o estado norte-americano ter quatro vezes mais mortes que o Brasil inteiro (24 mil contra 6 mil), a curva de casos e óbitos está descendente por lá.

Por outro lado, como bom conhecedor do sistema de saúde fluminense, o cardiologista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) teme que a situação saia de controle no Rio.

“Aqui nos Estados Unidos houve muita preocupação em se ter um problema de falha do sistema de saúde. Isso nunca aconteceu. Nunca faltou CTI e nunca faltou ventilador (…) A gente nunca, de fato, teve sequer um paciente que precisou de ventilador e não conseguiu. No Brasil, a situação é diferente. O sistema público de saúde do Rio de Janeiro, ele sempre funciona à beira do colapso. Já não parte de um nível basal bom”, comentou.

“É uma coisa que me preocupa, porque quando chegar, a gente pode imaginar cenas do tipo da Itália ou talvez até pior, se o sistema de saúde não conseguir responder. Pode chegar ao colapso.”

A tragédia na Itália chocou o mundo com cenas de falta de leitos e respiradores, com médicos precisando escolher entre quem teria a chance de viver. Situação semelhante viveu a Espanha e regiões do Brasil vão pelo mesmo caminho.

Até sábado (2), o estado do RJ tinha mais de 10 mil casos e quase 1 mil óbitos (971).

Enquanto a curva sobe, faltam leitos e respiradores. A Secretaria de Estado de Saúde e o Conselho Regional de Medicina estudam um protocolo para orientar médicos caso precisem fazer essa “escolha de Sophia”.

João Daniel nasceu e morou no Rio até o fim da primeira etapa de formação em medicina na UFRJ. Chegou a trabalhar como acadêmico na emergência do Hospital Municipal Miguel Couto, uma das mais movimentadas da cidade, e em hospitais particulares.

Nos Estados Unidos, especializou-se em cardiologia na Universidade de Boston, fez mestrado em saúde pública em Harvard e pesquisa em epidemiologia cardiovascular no Framingham Heart Study.

Hoje, dá aulas como professor assistente e atua no tratamento de Covid-19 no Montefiore Health System, hospital no Bronx que já atendeu mais de 6 mil pacientes com o vírus.

Em um mês e meio de atuação nos “covidários” – como médicos têm se referido às alas especializadas no tratamento da doença – João Daniel tem vivido isolado até da mulher, que está protegida na casa dos pais, em Nova Jersey, na região metropolitana de NY.

O casamento planejado para ser feito em Portugal no meio desse ano foi antecipado, às pressas, antes que os cartórios fechassem devido ao isolamento.

“Em duas horas, entrei no carro e dirigi para New Jersey, com a minha esposa, e deixei ela lá (…) A exposição é muito grande. Estou em quarentena da minha esposa.”

A rotina pesada nas enfermarias e UTIs começa a melhorar, conta o cardiologista:

“A gente está como maior número de mortes, mas quando você olha a realidade de Nova York, dentro da cidade, mesmo, todas as emergências estão muito melhores, estão desinstalando alguns hospitais de campanha, as internações têm caído. Hoje, está com menos de 90% da capacidade [dos leitos] (…) A ideia é que nas próximas semanas já baixe de 70% e, com isso, possa reabrir a cidade”.

Navio usado para tratar de doentes com Covid-19, que ficou aportado no Rio Hudson, deixou Nova York na quinta-feira (30) — Foto: Eduardo Munoz/Reuters

Para ele, as medidas de isolamento adotadas pelo governo de Nova York e rápido aumento no número de leitos foram fundamentais para que não houvesse falta de leitos ou respiradores para pacientes.

“A partir do momento que se faz um lockdown, se demora de duas a três semanas para se ter um resultado. Aos poucos, você vai conseguindo dar alta para o paciente, tratar dos pacientes e você vê que a capacidade dos hospitais começa a dar vazão. Hoje em dia tem uma série de leitos vazios, coisas que são inimagináveis. O hospital já está começando a cancelar enfermarias específicas para Covid. São sinais muito bons”, conta.

João Daniel lembra ainda de características de Nova York e da população que ele acredita terem influenciado no grande número de mortos.

“O que faz de Nova York ser uma cidade especial também transforma Nova York em uma cidade vulnerável. Tem muita gente, muito turismo e negócios com o exterior, mutia vida social, transporte público de massa. (…) Em 1º de março, só tinha dois casos de Covid no hospital. Abril, dia 2, tinha mais de 2 mil casos. Como vai se acumulando, fica desesperador.”

Isolamento

A atuação no combate e o estudo constante do comportamento da pandemia e as respostas de países pelo mundo fez com que o médico tenha uma certeza: a da eficácia do isolamento social.

O cardiologista cita como exemplo a diferença entre a evolução das curvas de Nova York e da Califórnia, estado com a maior população americana – 37 milhões de pessoas, quase o dobro de NY, com 18 milhões – e o primeiro a registrar a transmissão comunitária da Covid.

Até sábado (2), os dados apontavam 12 vezes mais mortes no estado da costa leste:

  1. Nova York: 24 mil mortes e 319 mil casos

  2. Califórnia: 2 mil mortes e 52 mil casos

Enquanto a Califórnia foi pioneira na determinação do distanciamento social, Nova York demorou ao menos uma semana mais para adotar as medidas.

“É quase como um experimento quase natural de um estado que fechou rapidamente e outro que demorou para entender que esse era um negócio grande”, comenta João Daniel.

Troca de experiências com médicos no Brasil

O cardiologista conta que a comunidade médica tem se unido na troca de informações sobre o combate à doença. Ele próprio diz estar dando para colegas e amigos do Rio e de outros estados para passar sua experiência, antecipada em algumas semanas.

“A primeira questão foi a dos EPIs [equipamento de proteção individual]. Houve uma disputa grande [pela compra]. Todos os hospitais do mundo atrás. E vem tudo da China, que também está precisando. Agora, está bem melhor. Isso aconteceu com todos os hospitais de NY, público, privado.”

Reconhecimento, solidariedade e frustração

Mais do que nunca, João Daniel se sente reconhecido pelo trabalho. Nas ruas de Nova York, profissionais de saúde são saudados por pedestres e motoristas, atitude que normalmente é vista com ex-combatentes das forças armadas norte-americanas ou com bombeiros diante de grandes tragédias, como o 11 de setembro. O carinho entre os colegas também ficará na memória.

“A coisa mais fantástica é a solidariedade dentro do sistema de saúde, das pessoas de todo o mundo. Em termos de pesquisa, ligamos para pessoal da Itália, da China, compartilhando muito dado, experiências. E a solidariedade do ponto de vista da sociedade também. Estou andando e me cumprimentam. Sempre fazem com militar e é a primeira vez que vejo.”

Apesar do orgulho com a profissão, o cardiologista demonstra frustração ao falar do tratamento.

“Apesar de realizado com minha escolha profissional, estou frustrado do ponto de vista de efetividade. A gente não está com eficiência agora, sabe. É uma coisa que a gente tem que batalhar ainda. A gente vai na medicina para ajudar os outros, mas por enquanto a gente ainda não tem uma maneira efetiva de tratar essa doença (…) É uma lição de humildade.”

Legado científico

Se a batalha contra a Covid é a mais dura que o médico já enfrentou na carreira, ao menos outras lutas no Brasil podem aproveitar o aprendizado que ficará, acredita Fontes.

“Pandemias como a Covid são eventos raros, mas epidemias como dengue, zika e chikungunya são fenômenos recorrentes. Talvez, um legado benéfico dessa crise seja o entendimento de um investimento maciço em saúde pública.

Fonte: G1

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