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‘Me resta perguntar: quando vou me infectar?’, diz médico de hospital em Niterói, que pr

Coordenador médico do Hospital Municipal Carlos Tortelly, referência para a Covid-19 em Niterói, o cardiologista Alexandre Vergete, de 38 anos, diz que sofre hoje de ansiedade por causa do novo coronavírus: com uma jornada de trabalho hoje de cerca de 12 horas por dia, ele mal dorme pensando em como será o pico da epidemia. Vergete, que também atua no CTI de um hospital particular e é casado com uma médica do Corpo de Bombeiros, precisou se afastar dos filhos, com 8 e 4 anos, para evitar o risco de infectá-los.

Em depoimento ao GLOBO, após deixar o hospital público na noite da última quarta-feira, ele deu detalhes sobre a rotina que foi completamente alterada nas últimas semanas. Naquele dia, o cardiologista precisou se paramentar mais de dez vezes com equipamentos de proteção individual. Vergete acredita que dificilmente se livrará do vírus: ser contaminado, para ele, é uma questão de tempo. Confira o depoimento na íntegra:

‘É quase impossível os médicos não contraírem o coronavírus’

“As coisas mudaram muito com a pandemia. Tenho dois filhos, e a minha esposa é médica também, trabalha na ambulância do Corpo de Bombeiros. Me afastei dos meus filhos há mais de dez dias: o mais velho, Pedro, de 8 anos, está com a mãe no Rio, e a minha mais nova, Maria Clara, de 4, está com a minha sogra, que é idosa e do grupo de risco. Ela mora a 200 metros da minha casa, em Icaraí, mas não podemos nos ver. O mais velho ainda entende, mas a mais novinha quer ir para casa. E isso que estamos passando não tem data. Eu e minha mulher não sabemos quando teremos contato de novo com nossa filha. Porque estamos no front, não tem como não nos afastarmos.

A prefeitura aumentou o número de leitos do hospital, tentando preparar, a toque de caixa, na maior velocidade possível, a unidade para a pandemia. E o trabalho dobrou. Todo dia começo às 7h, sem hora para chegar em casa. Você precisa estar com imunidade boa, mas o momento exige passar o dia todo no hospital, numa rotina estressante. É quase impossível os médicos não contraírem o novo coronavírus. Vários colegas já estão adoecendo, deixando a gente assustada. E cada vez mais vemos pessoas mais novas com sintomas graves. Me resta perguntar: quando vou me infectar e como o vírus vai ser em mim? Sinto medo, porque não é uma gripe comum.

‘A parte mais difícil é falar com as crianças: fica difícil não chorar’

É difícil hoje dormir; a cabeça não para de pensar. Pratico triatlo, o que é uma válvula de escape. Agora tento me exercitar indoor. Ainda não temos o caos instalado no hospital, temos bastante leitos disponíveis, conseguimos atender todo mundo. Mas a ansiedade é grande: quando vai começar o pico? Não queria que começasse nunca, mas é o que vai acontecer. É aquela ansiedade de querer que comece e passe logo. A parte mais difícil disso tudo, no entanto, é falar com as crianças: fica difícil não chorar.

No hospital, hoje é tudo diferente. Tem toda uma paramentação para evitar contaminação. Hoje (quarta passada), me paramentei mais de dez vezes. Os procedimentos mudaram todos. É preciso treinar a equipe o tempo inteiro, porque todo dia há informações novas. Em relação aos pacientes, há os que chegam com cansaço, falta de ar muito grande. Para quem fica internado é muito complicado, porque estão afastados das famílias, você passa notícias por telefone. É uma pandemia que elimina o convívio social, mesmo para quem não está doente. Está todo mundo sozinho.

‘Cada minuto que se perde, menos chance para o paciente’

A paramentação é trabalhosa. Você tem que colocar óculos, gorro, máscara, capote… Os equipamentos de proteção individual você precisa trocar a cada paciente, a cada processo. Às vezes, um mesmo paciente você visita umas cinco vezes, e tem o enfermeiro, o fisioterapeuta… Não tem número suficiente de EPIs no planeta para isso, mesmo que você tenha recursos para comprar. Essa é uma das minhas grandes preocupações para os próximos 30 dias.

Alexandre Vergete está na linha de frente, no Hospital Municipal Carlos Tortelly, referência no combate à doença Foto: ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo

Alexandre Vergete está na linha de frente, no Hospital Municipal Carlos Tortelly, referência no combate à doença Foto: ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo

Por causa dessa paramentação, tudo leva mais tempo. Mas se o paciente não receber naquele momento a quantidade de ar suficiente ele pode ter uma parada cardíaca. Essa é uma das dificuldades. No dia a dia comum, quando um paciente tem uma parada você corre e faz as manobras. Hoje, com o isolamento, você tem que se paramentar antes. E cada minuto que se perde é menos chance para o paciente.

‘Nunca tinha passado por nada parecido’

Já tive que lidar com um doente com suspeita de coronavírus que teve parada cardíaca. Era um senhor que estava no setor de isolamento monitorado. Quando percebemos, a equipe toda teve que se programar para entrar. Nisso, você perde tempo. A equipe não teve sucesso nesse caso; mas se tratava de um paciente idoso, com problemas pulmonares e cardíacos, que, infelizmente, morreu. A gente fica triste nessas situações; não é por ser médico que a gente se acostuma.

E eu nunca tinha passado por nada parecido com essa pandemia. Só tinha visto essa palavra em filmes e livros. Trabalhamos na nossa rotina com doentes com insuficiência respiratória, só que a diferença agora é a quantidade de pacientes. Estamos nos preparando para uma situação crítica. E aí vem a ansiedade: não sabemos como vai ser. A vantagem é que minha mulher é da mesma profissão. Mas a gente se pergunta: até quando vamos aguentar?

‘Você vê notícias da China, Itália e agora Nova York e pensa: será que aqui vai ser assim?’

De manhã, antes de ir para o trabalho, eu sempre fazia um treino, era bicicleta, natação ou corrida. Trabalhava em mais de um hospital, com equipes já conhecidas. Voltava no final do dia para casa e brincava com as crianças. Nas últimas semanas essa rotina virou casa, hospital, casa. Tenho dificuldade em saber que dia é hoje. Antes, trabalhava cerca de oito horas por dia; hoje, tenho trabalhado 12h. E quando você chega em casa é difícil conversar sobre outro assunto. Você vê notícias da China, Itália e agora Nova York e pensa: será que aqui vai ser assim?

“Será que vai chegar um dia que eu terei que escolher quem vou entubar? O que eu mais temo é não poder dar assistência a todo mundo”ALEXANDRE VERGETECoordenador médico do Hospital Municipal Carlos Tortelly, referência para a Covid-19 em Niterói

Estamos falando de grandes centros com estruturas que colapsaram. Como, então, vai ser no SUS? O SUS é um sistema grande, mas é frágil. Estão melhorando muito a estrutura, aumentando o número de leitos. Mas será suficiente? Será que vai chegar um dia que eu terei que escolher quem vou entubar? O que eu mais temo é não poder dar assistência a todo mundo.

Eu coordeno a área médica do hospital (que engloba a emergência e a clínica médica) e, apesar das dificuldades do SUS, é gratificante receber mensagens de médicos dizendo “se precisar de mim, me liga”. Isso anima. Com a montagem das tendas fora do hospital e do CTI para coronavírus em apenas três dias, as equipes têm vindo trabalhar mais dispostas. Com a estrutura que a gente tinha só boa vontade não resolveria muita coisa.

‘Enfrentamos uma guerra todos os dias’

Hoje recebemos em média, 60, 65 pessoas por dia com sintomas da Covid-19; somos referência em Niterói. Todo mundo que chega com tosse é um potencial paciente. A maioria é liberada no atendimento nas tendas. Mas há casos em que é difícil o médico decidir sozinho. Acontece de reunirmos cinco, seis médicos e não termos certeza. Na dúvida, é melhor colocar em isolamento.

Espero que, depois disso tudo, mudem as condições de trabalho para os profissionais da saúde. Não sei por que somos tão esquecidos. E esses leitos criados devem entrar na conta do hospital, onde enfrentamos uma guerra todos os dias. Estudei na UFF e, desde os tempos do Hospital Universitário Antonio Pedro, emergência é um vício para mim. Mas não gosto do caos, não. Prefiro ter tudo administrado.

Churrasco depois que a crise acabar:’Algo bem junto’

Depois que essa crise acabar, também quero reunir o máximo de pessoas para um churrasco, para fazer algo bem junto. Quero andar na rua tranquilo. E, quem sabe, tirar uns dias de folga, ir à praia. Acho que a gente vai merecer.” 

Fonte: O Globo

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