Seu parceiro vai sair à noite com os amigos e isso já é suficiente para despertar uma desconfiança inabalável, ainda que não haja qualquer indício que aponte para uma infidelidade. Ou o medo de ser abandonado é tão grande que o cuidado com o par romântico passa a ser excessivo – as preocupações com o bem-estar dele, como se já comeu, se já foi ao médico, se já descansou, vêm acima das suas.
Os cenários acima podem ser fáceis de reconhecer. Se não aparecem nas próprias vidas, surgem em histórias de amigos, de familiares, livros, filmes e novelas. Mas o que muitos podem considerar normal, como uma dose de ciúme que até faria bem ao casal, não é encarado da mesma forma por especialistas no assunto. Pelo contrário, em vez de indicar saúde, são vistos como manifestações de quadros chamados de ciúme excessivo e amor patológico, que demandam tratamento.
É o que explica, em entrevista ao GLOBO, a neuropsicóloga Andrea Stravogiannis, coordenadora dos setores dedicados aos dois diagnósticos no Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (Ipq-HC-FMUSP). A experiência de quase 20 anos na unidade é contada em seu novo livro: “Ciúme excessivo & Amor patológico: quando o medo da traição e do abandono se torna uma obsessão” (Literare Books).
Quando o amor é patológico, e o ciúme, excessivo?
O amor patológico é marcado pelo comportamento de prestar cuidados de forma excessiva ao parceiro. O indivíduo começa a se esquecer da própria vida, cuida muito mais do interesse do outro, se ele está bem, se já marcou médico, se comeu, mas não faz o mesmo para si. E na maioria das vezes isso é uma forma velada de controle, porque a pessoa com amor patológico tem muito medo de ser abandonada e tenta manter o parceiro pelo excesso de zelo.
Já o ciumento excessivo é caracterizado por uma ansiedade muito grande, em que qualquer situação que o parceiro está envolvido pode ser interpretada como algo que vá roubá-lo dele.
Um aperto de mão que parece mais demorado, uma troca de telefones. Ele fica a todo tempo alerta, sempre suspeitando da infidelidade. Com isso, desenvolve comportamentos impulsivos, começa a stalkear as pessoas nas redes sociais, monitora onde a pessoa vai, confere conta de cartão de crédito. Tudo buscando descobrir se está ou não sendo traído. E o fato de não descobrir nada não o tranquiliza. Ele pensa “deve ter algo escondido, não devo ter procurado direito”.
E como é visto na área médica, já são doenças reconhecidas oficialmente?
Eles não estão individualmente no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), por enquanto entram como uma característica dos transtornos do impulso ou do transtorno obsessivo-compulsivo. Essa área é muito recente, então pode demorar para serem reconhecidos como um transtorno próprio.
Mas é assim que começa, nós vamos fazendo pesquisas, analisando pacientes, comparando com sujeitos saudáveis. A partir desses estudos que vamos conseguir de fato torná-los uma patologia oficial.
Na sua visão isso seria o ideal para ter um olhar maior sobre o tema?
Sim, o ciúme excessivo e o amor patológico deveriam ser encarados como diagnósticos. Isso seria maravilhoso, porque o número de pessoas que sofrem com episódios de ciúme excessivo e amor patológico é muito grande. O ciumento excessivo, se ele não se tratar, buscar ajuda, ele vai ser assim para o resto da vida. E isso vai atropelando todas as suas relações amorosas, podendo evoluir para casos de agressividade.
Quais são os sinais que as pessoas devem estar atentas?
Em relação ao amor patológico, se você se dedica mais à vida do seu parceiro do que à sua própria. Ao invés de focar no seu trabalho, você está pensando no que seu parceiro está fazendo, no que ele está precisando. Se seu parceiro fala para você “nossa, como você está grudento”, se você paga recorrentemente coisas para o parceiro, se sente sintomas de abstinência diante de um rompimento, como comer de mais ou de menos, taquicardia, tudo isso são sinais.
Já o ciumento excessivo tem mais dificuldade de perceber o quadro em si mesmo. Porque ele tem muito a noção de que está cuidando do próximo, e é o outro que está errado ao usar uma saia curta, ter muitos amigos, querer sair sozinho. Mas se você percebe que está controlando muito o outro, stalkeando as redes sociais, pegando o celular às escondidas, buscando senhas, tentando ver as mensagens. Se percebe que o parceiro fica tenso quando vai sair com você, com medo de você falar algo. Se a pessoa está com a liberdade controlada, esses são os sinais.
O que chama atenção nos pacientes atendidos no ambulatório?
Tem dois cenários importantes. Um é que as pessoas podem sofrer muito com isso e vir a desenvolver sintomas depressivos e ansiosos. Então se ela já tem esses problemas, eles podem exacerbar o quadro.
O outro é a diferença em relação à agressividade. Muitas vezes as pessoas com amor patológico tendem a machucar a si mesmas, é algo auto agressivo. Podem pensar até em tirar a própria vida para tentar acabar com aquela dor que vem do medo de ser abandonada, isso é relatado por cerca de 50% dos nossos pacientes.
Já o ciumento excessivo é muito mais "heteroagressivo", ou seja, tende a agredir o outro. Isso é importante porque em casos muito mais graves eles podem chegar a matar seu parceiro ou parceira, basta vermos as notícias dos jornais. É uma impulsividade muito grande e uma dor por se sentir traído é maior ainda. Então não é besteira o que estamos tratando, pode levar a prejuízos enormes.
Suas pesquisas de mestrado e doutorado foram sobre o tema e mostraram diferenças entre homens e mulheres, quais foram elas?
No passado, o homem tinha mais ciúme sexual, ou seja, de que a parceira se envolvesse com uma terceira pessoa. Muito ligado à questão do filho, de designar recursos para uma pessoa que podia não ter a sua genética. Já as mulheres tinham mais ciúme emocional.
Eu repliquei essas diferenças com os pacientes durante meu doutorado, e o que me surpreendeu foi que elas continuam. Os homens ainda são muito mais impactados pelo ciúme sexual, e as mulheres, pelo emocional. Nós imaginávamos que o homem teria muito mais ciúme emocional na sociedade de hoje, porque ele envolve esse lado do vínculo, do estar de fato presente na relação com o outro.
Houve aumento na procura pelo ambulatório? E como é feito o tratamento?
O ambulatório existe desde 2005. Antes precisávamos anunciar nos jornais, nas revistas, para que as pessoas fossem buscar ajuda. E eram sempre mais mulheres, os homens quase não apareciam. De uns 10 anos para cá, a procura cresceu bastante, nem precisamos mais fazer esse tipo de divulgação. Na minha equipe, já passaram cerca de 400 pessoas no total. Agora, nós atendemos dois grupos de em média 20 pessoas por ano.
Quando a pessoa chega no ambulatório ela passa por uma triagem em que identificamos se a pessoa está sofrendo mesmo de ciúme excessivo ou de amor patológico. Depois ela é encaminhada para o tratamento psicoterápico, que é sempre em grupo. Temos também sessões motivacionais, que servem para que a pessoa não desista do tratamento.
Há ainda um acompanhamento psiquiátrico porque em alguns casos pode ser necessário o uso de medicamentos como ansiolíticos, antidepressivos ou remédios para impulsividade.
O que você diria a alguém que está num relacionamento com alguém que manifesta ciúme excessivo?
Tem que usar muito da assertividade para ir pontuando como você está se sentindo. É muito por aí, mostrando como é ruim também para a pessoa que vive com a desconfiança. Os parceiros de pessoas com ciúme excessivo por exemplo trazem muito aqui na clínica uma questão de ficar pisando em ovos. Mas é preciso haver limites. Não deixar que o ciumento tome conta da sua liberdade. E, se não der certo, busque ajuda. Não é raro um paciente chegar no ambulatório dizendo que foram levados pelo parceiro. Geralmente essa pessoa se convence de que tem um problema durante o tratamento.
Hoje fala-se muito em relacionamentos tóxicos ou abusivos. Qual a relação do ciúme excessivo com esses casos?
O relacionamento abusivo é permeado pelo ciúme excessivo. Nesse caso, o ciúme vem com essa questão da agressividade, que pode ser verbal, como xingar a pessoa, e até mesmo física, quando chega a bater. E tolher a liberdade da forma que seja não deixa de ser uma agressão. Só que nem sempre o ciumento excessivo chega a esse ponto, há casos em que o ele guarda aquilo para ele, embora seja mais raro. Então todo relacionamento abusivo vai ter um ciúme excessivo envolvido, mas nem todo ciumento excessivo vai ser abusivo.
No meio desses sinais, o que pode indicar um relacionamento saudável?
Quando há companheirismo, quando você consegue compartilhar aquilo que está sentindo. Quando tem bastante assertividade, ou seja, é possível se entender e resolver os problemas, por mais que haja uma discordância. Todo mundo tem um pouco de ciúme, isso é normal, mas nesse caso há uma conversa sobre ele quando ele aparece, se resolve. Só que cada um com a sua individualidade, em que uma parte do relacionamento pode sair sozinha, se divertir, sem que o outro fique remoendo em casa. É um relacionamento muito baseado no carinho, no divertimento, no curtir a companhia do outro.
No seu livro, você utiliza muitos exemplos da mídia, como filmes e livros, para ilustrar a forma como o amor é representado na sociedade. Qual o impacto disso?
Eu fui criada com os filmes dos anos 90, em que a menina feia se transformava na bonita e ganhava o amor do menino popular. Esse amor romântico idealizado, construído nos filmes, nas músicas, não existe na vida real. Só que isso acaba propagando essa ideia, essa questão muito cultural de endeusar o sofrimento por amor, de que existe um amor predestinado. Então acabamos aprendendo dessa maneira, que tudo bem sofrer.
Isso ainda existe, mas mudou muito. Vemos uma outra postura hoje, que busca nivelar a mulher e o homem no relacionamento. Tanto entre pessoas heterossexuais, como em relações de pessoas do mesmo sexo. Diminuiu essa ideia de que só o homem pode transar, e a mulher precisa continuar “pura”, por exemplo.
Fonte: O Globo
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