Para ficar em pé, o analista de sistemas Mostafe Amed, de 66 anos, que mora em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, precisa travar as órteses que mantêm as pernas esticadas. Para andar, só com o apoio de duas muletas.
A secretária aposentada Rai Lorenzetti, de 72 anos e moradora da Vila Mariana, na Zona Sul da Capital, trocou as muletas pela cadeira de rodas quando engravidou pela primeira vez, para correr menos riscos de queda e se sentir mais segura.
O marido dela, Alvaro, que tem 68 anos, nasceu em Adamantina, no Interior paulista, e chegou a competir em atletismo como levantador de peso, hoje não tem mais a mesma força nos braços e precisa vestir um colete especial para não sentir as dores constantes na coluna. Os três fazem parte de um grupo de milhares de brasileiros que tiveram poliomielite antes da chegada ao Brasil da primeira vacina contra o poliovírus, que é transmitido pelas fezes e atualmente combatido com algumas doses injetáveis do imunizante aos dois, quatro e seis meses de vida, e de gotinhas aos 15 meses e quatro anos.
Para o neurologista Acary Souza Bulle Oliveira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o cotidiano deles incorpora o resultado de décadas do avanço da medicina provocado pela doença. “A pólio nos trouxe a vacina, a forma de fazer vacina. Vejam agora em relação à Covid-19, à Coronavac, é a mesma forma”, explicou ele em entrevista ao SP1. “Ela nos trouxe os aparelhos chamados órteses, para nos ajudarem no dia a dia. Ela nos trouxe a primeira UTI, não se tinha UTI antes. Ela nos trouxe o primeiro aparelho ventilador. Inicialmente, tinha um aparelho chamado de pressão negativa, o ‘pulmão de aço’. E hoje temos ventiladores pequenininhos domiciliares, que mantêm as pessoas vivas, respirando, podem ir e vir, frequentarem atividades sociais.” (Dr. Acary Souza Bulle Oliveira, neurologista) Recentemente, os sobreviventes da pólio se viram obrigados a assumir o papel de ativistas pela vacinação. Eles são unânimes em dizer que a queda recente na cobertura vacinal coloca em risco toda uma geração de bebês que, caso o vírus retorne ao Brasil, podem sofrer com os mesmos problemas para o resto de suas vidas. Nesta semana, o Ministério da Saúde anunciou a prorrogação da campanha de multivacinação, destinada a garantir doses atrasadas de dez imunizantes diferentes para crianças de cinco a 14 anos, e da vacina em gotinhas contra a pólio para as crianças de um a quatro anos.
Entre 8 de agosto e 9 de setembro, a campanha multivacinação já aplicou 908 mil doses contra a pólio no Estado de São Paulo, o que representa apenas 38,3% do público-alvo, segundo um balanço divulgado na noite desta sexta-feira (9) pela Secretaria Estadual da Saúde (SES-SP).
A pasta afirmou ainda que outras 503 mil crianças e adolescentes de cinco a 14 anos (8% dos mais de 9 milhões de paulistas nessa faixa etária) compareceram aos postos de vacinação, e cerca de 290 mil tomaram alguma das outras dez vacinas disponíveis.
Segundo o neurologista, além da medicina, foi para atender as crianças que acabaram permanentemente acamadas que foi inventada a primeira documentação de slide no teto, o primeiro carro adaptado, as leis de acessibilidade e o esporte adaptado.
"Tudo que estamos vendo aqui hoje, do ponto de vista de acessibilidade e de leis e de facilidade para ao dia a dia, tem a ligação com a poliomielite", diz Oliveira. "Não podemos, de jeito nenhum, em homenagem a essas pessoas, deixar que a poliomielite retorne. Portanto, vocês pais, mães, avós, não deixem a pólio voltar. Vacinem, vacinem, vacinem." A falta de informação e o preconceito Nada disso existia quando Rai Lorenzetti nasceu em 1950, em São Luís, no Maranhão. “Tive pólio com dois anos. Onde nasci não tinha médico, não tinha nada, a única coisa que tomei foi penicilina. Até então minha mãe nem sabia nada a respeito dessa doença”, lembra ela. Quando os problemas de desenvolvimento pioraram, a mãe chegou a levá-la a Belém, mas ouviu que não haveria solução para a filha.
“Foi quando um padre da cidadezinha me descobriu e disse para minha mãe que aqui em São Paulo existia um centro de reabilitação que era a AACD [Associação de Assistência à Criança Deficiente]. Estava inaugurando. Aí ela criou todas as forças e me trouxe. Mas ela pensava que o tratamento fosse de uma semana, 15 dias. Eu fiquei três anos”, diz. “Quando vim para São Paulo já tinha 14 anos, a perna já estava atrofiada, os nervos, porque já estava no meio do crescimento.” A então adolescente conseguiu manter o tratamento na associação até os 17 anos, mas diz que, naquela época, o volume de crianças com deficiência era tanto que a entidade não conseguia atender todas as pessoas de forma permanente. “Voltei pro Maranhão, mas não quis ficar mais lá devido a um monte de preconceito, as pessoas não entendiam. Eu usava aparelho, muletas, aparelho ortopédico de ferro nas duas pernas. A pólio tira força dos membros. No meu caso foi nos membros inferiores, não tenho força nas pernas. Fiz 16 cirurgias, porque estava atrofiada. Já vim tarde. Quando é criancinha é mais fácil.” (Rai Lorenzetti, secretária aposentada) ‘Pulmão de aço’ e uma infância engessada Alvaro, marido de Rai, só sobreviveu à doença quando bebê porque foi colocado dentro do “pulmão de aço”, uma máquina criada nos anos 1920 que exerce pressão para expandir a caixa torácica e forçar a entrada de ar no pulmão.
“Tive pólio, mas eu tive no corpo inteiro, nos braços, fiquei no pulmão de aço vários meses”, lembra ele.
Mostafe Amed tinha 11 meses em 1957 quando ele, um irmão e a mãe tiveram febre ao mesmo tempo e, numa viagem de trem, seu pai o segurou no colo e sentiu o então bebê tendo espasmos. No dia seguinte, notou que ele não parecia estar movendo as perninhas, e voltou com o filho correndo à cidade em busca de um médico. “A fila em frente ao Hospital das Clínicas dava volta nos quarteirões. Cheio de mães, pais, carregando crianças chorando vítimas da pólio”, diz ele sobre a história relatada pelo pai. “Fiquei 40 dias em quarentena. Eles me olhavam por uma janelinha, a única coisa que eles podiam fazer.” Depois que ele sobreviveu, os pais buscaram um especialista. “[Ele] me examinou, falou que eu ia passar por uma série de cirurgias e lá para frente ia andar com duas bengalas. Ele chegou muito perto da verdade. Hoje eu ando com dois aparelhos ortopédicos, duas órteses, uma em cada perna, e duas muletas.”
A primeira cirurgia de Mostafe foi no quadril, um abaixamento da bacia. “Ele deixou reto, foi a base para outras cirurgias”, explicou ele, como cirurgias corretivas nas pernas, duas cirurgias para a coluna, todas necessitando de longas recuperações, que chegavam a deixá-lo engessado por meses, tendo que ser alimentado pela mãe. “O quarto ano do primário fiz em casa.”
Entre as sequelas da pólio esteve uma escoliose, que afetou suas duas pernas e um pouco da minha coluna e exigiu a primeira cirurgia da coluna, em 1970. Mas com o tempo a coluna voltou a entortar. Em 1980, seu cirurgião voltou a operá-lo novamente. “Ele usou um método novo, colocou uma haste de platina que eu tenho até hoje. Aí sim, estabilizou as cirurgias.” Mostafe Amed, analista de sistemas, teve poliomielite com 11 meses de idade e necessita de órteses nas pernas para por ficar de pé, e o apoio de duas muletas para andar. O esforço repetitivo das mãos para ajudar na função das pernas fez com que, décadas depois da infecção, ele passasse a ter problemas nos tendões das mãos. A doença passou a ser conhecida como
Superação no esporte e a Síndrome Pós-Pólio Quando começou a tratar as sequelas da poliomielite em São Paulo, Rai descobriu as modalidades esportivas para pessoas com deficiência. “Fiz esporte, natação, atletismo, basquete, fui até pra Inglaterra competir, porque a minha classificação dava para entrar nessa parte. E ganhei medalha de bronze.”
Foi praticando esporte que ela também ganhou o amor de sua vida, o marido, Alvaro, com quem casou e teve dois filhos que já lhes deram netos.
“Eu era levantador de peso”, conta ele. “Era muito bom. A gente se sentia naquela época, em 1977, era muita discriminação do deficiente. E o esporte dava para nós a liberdade de não ser discriminado. [A gente] fazia esporte igual a qualquer outra pessoa.”
Depois de adultos, porém, Alvaro, Rai e Mostafe relatam que seus corpos voltaram a sofrer com novas sequelas da poliomielite. Trata-se de uma nova doença, chamada de Síndrome Pós-Poliomielite, segundo explica o Dr. Acary Oliveira.
Ela surge depois de décadas da infecção, porque os neurônios vizinhos aos que foram comprometidos pela doença acabam tendo que trabalhar mais durante muitos anos e, em um determinado momento, também começam a ficar comprometidos (leia mais abaixo). ‘Parece que a gente nunca vence a pólio’ Os três sobreviventes dizem que, hoje em dia, seus membros perderam ainda mais força, e agora são acometidos por dores intensas e constantes.
“O corpo vai cansando. Nossos braços, nossas pernas. Os movimentos repetitivos vão cansando. E o corpo já não vai mais conseguir achar um outro caminho para substituir esses músculos que estão cansados. A gente sente muita dor, sente muito incômodo o dia inteiro. Eu uso colete para não doer a coluna o dia inteiro, coisa que eu não usava.” (Alvaro Lorenzetti, analista de informática aposentado)
Mostafe diz que, no seu caso, a síndrome atacou principalmente os braços, provocando dores nas mãos até para abrir uma lata de refrigerante.
“O que minhas pernas não podiam fazer, meus braços fizeram. Então tive problema no tendão, eu não tenho tendão no braço direito. O ortopedista que me tratou inclusive falou ‘olha, o que acontece é que você usou seus braços no lugar das suas pernas. Então seu corpo tentou transformar seu ombro num quadril, ele tentou fortalecer. Mas ele não foi feito pra isso. Parece que a gente nunca vence a pólio”, resumiu.
O analista de sistemas diz que, depois de adulto, conseguiu superar o medo e pesquisar mais sobre a história da vacina, para saber se seu caso foi realmente de infecção por falta de imunizante, ou se seus pais falharam em garantir sua vacinação enquanto bebê. Descobriu que, de fato, a vacinação no Brasil só teve início anos após sua doença.
“Fico imaginando o peso que seria para o meu pai se a vacina existisse e ele não tivesse me dado a vacina. Então realmente não consigo entender como alguém pode deixar de vacinar seu filho e vai deixar esse legado. Você não quer tomar vacina, não toma. Mas não vai tomar essa decisão por uma criança, sabe? Depois quem vai tocar a vida é o filho. (...) Você pode adaptar, pode ter rampa, pode ter corrimão, mas tem aquelas coisas que eu perdi para sempre. Aquela coisa que eu queria, por exemplo, adolescente, pegar na mão da minha namorada, correr em direção ao mar, quebrar uma onda... Eu nunca fiz isso. Isso eu perdi. Esse legado que essas pessoas vão deixar para os filhos.” (Mostafe Amed, analista de sistemas)
Perguntas e respostas sobre a poliomielite
O que é a poliomielite? Segundo o neurologista Acary Souza Bulle Oliveira, da Unifesp, a doença, popularmente conhecida como pólio e, antigamente, como paralisia infantil, é uma inflamação da medula, uma estrutura localizada dentro da coluna. A inflamação afeta os transmissores que levam mensagens até a musculatura. Uma vez dentro do corpo, o vírus se desenvolve no intestino e pode chegar à medula do paciente, onde os neurônios são infectados e acabam provocando atrofia muscular.
O que causa a poliomielite? A doença é provocada pelo poliovírus, da família dos enterovírus, que são transmitidos pelas fezes. Em geral, o vírus entra pela boca por meio de mãos não higienizadas e previamente contaminadas por fezes onde ele estava presente. A pessoa infectada por transmitir o vírus mesmo sem apresentar sintomas, e o poliovírus é altamente contagioso.
Quais são os sintomas da poliomielite? A doença pode ser assintomática ou provocar sintomas parecidos ao da gripe, como febre, cansaço extremo e dores de garganta, de cabeça, músculo ou estômago. Uma minoria dos casos pode desenvolver sintomas mais graves, como paralisia, meningite ou até morte.
O que é a Síndrome Pós-Poliomielite? É uma segunda doença que acomete os sobreviventes da pólio décadas depois da infecção pelo poliovírus. Nesse caso, não se trata de uma segunda infecção, mas sim de uma doença degenerativa, provocada pelo desgaste dos neurônios não afetados pela primeira doença, mas que são vizinhos aos neurônios afetados e que tiveram que acumular as funções deles para garantir algum funcionamento dos músculos. Em 2008 a Síndrome Pós-Pólio foi incluída pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na Classificação Internacional de Doenças (CID).
A poliomielite tem cura? Não.
Como é feita a prevenção? Por meio da imunização contra os vários tipos do vírus. No Brasil, o ciclo de vacinação contra a pólio envolve três doses injetáveis de vacina aos dois, quatro e seis meses de idade, e outras duas doses orais, aos 15 meses e quatro anos.
A vacina é segura? Sim. Segundo Melissa Palmieri, médica da Vigilância Sanitária da Secretaria Municipal da Saúde em São Paulo, o maior risco é contrair a doença, e não tomar a vacina. "As vacinas são seguras, as reações que falamos supostamente atribuíveis à imunização são raras e autolimitadas. Então a confiança na vacina tem que ser estabelecida porque é ela que tem salvado a vida das crianças há vários anos. E se tivermos uma cobertura vacinal baixa, nós deixamos um terreno fértil pro vírus."
Quando a poliomielite foi descoberta? O neurologista da Unifesp diz que é uma doença antiga, registrada pela primeira vez 1.400 anos antes de Cristo. No início do século XX, ela voltou a se espalhar. Na década de 1920, ela passou a se tornar conhecida depois que o americano Franklin Roosevelt, então um político já conhecido e um homem saudável, nadou em um lago no Canadá e, no dia seguinte, notou problemas para mover uma das pernas. À noite, teve febre e dores nas pernas e costas, e em uma semana perdeu todo o movimento da cintura para baixo. Uma década depois, ao ser eleito presidente dos Estados Unidos, ele criou uma comissão para pesquisar a paralisia infantil, o que levou a várias descobertas e ao avanço do tratamento.
A poliomielite está erradicada no Brasil? Atualmente sim, devido ao sucesso da campanha de vacinação na década de 1980. O último caso detectado no Brasil ocorreu em 1989, e em 1994 o país recebeu o certificado de erradicação da doença, assim como quase todos os países do planeta. No entanto, o vírus recentemente tem sido encontrado novamente em amostras de esgoto em diversos países. Em 21 de julho, um caso foi registrado em uma cidade do Estado de Nova York, nos EUA e, desde então, o poliovírus foi detectado no esgoto de outras duas cidades. Por isso, nesta sexta-feira (9) o governo local decretou estado de emergência para intensificar as ações de vacinação e vigilância sanitária contra a doença. O motivo é a baixa cobertura vacinal, em declínio tanto no Brasil. No Estado de São Paulo, em 2010, 100% do público-alvo foi imunizado. Em 2020, essa cobertura caiu para 82%, segundo análise do Instituto de Estudos para Políticas da Saúde (IEPS) a partir de dados do Datasus.
Fonte: G1
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