Se por um lado alguns negros tiveram a chance de inovar dentro das suas profissões, para outros o caminho inicial ainda é bem difícil. E em certas áreas, eles podem se ver praticamente sozinhos na luta contra o racismo estrutural dentro do mercado de trabalho, o que torna a sua ascensão mais difícil – e consequentemente, faz as vitórias terem um valor ainda maior.
É o caso de Caio Portela. Médico da família no Hospital Sírio-Libanês, ele soube se reinventar após uma questão familiar importante afetá-lo, e usar isso para ingressar na profissão que tanto ama, trazendo um jeito diferente de atender aos seus pacientes. Dr. Caio tem 32 anos e é formado médico há seis. Natural de Salvador, ele não teve a medicina como primeira opção profissional: chegou a cursar engenharia durante um semestre, e parecia se sentir bem com a profissão que havia escolhido. No entanto, a morte do avô terminou por mudar a sua percepção das coisas com as quais estava envolvido, bem como o que pensava do seu próprio futuro.
“Fiz engenharia em Salvador, mas vi que não era a minha praia. Daí, quando meu avô veio a falecer, eu participei do processo do adoecimento dele. E com esse evento, eu decidi que ia fazer medicina. E estou aqui até hoje, porque me apaixonei, né?”, conta. Se por um lado Caio encontrou no meio de uma tragédia familiar a área que lhe deu a realização profissional, nem tudo foram flores. Ao ingressar na faculdade – a Universidade Federal do Rio de Janeiro –, ele percebeu uma realidade muito diferente do cotidiano de sua cidade natal, que é a mais negra de todo o país: em sua sala, havia apenas ele e mais duas pessoas pretas dentre cerca de 80 alunos.
“Quando eu entrei na universidade, ainda que na universidade pública, não existiam as políticas afirmativas na universidade em que eu me formei”, relembra o médico, que admite o incômodo inicial com a situação que precisou viver. “O impacto é muito grande no começo. Você está ali, olha para os lados e não enxerga pessoas parecidas com você. E se você não cria uma estratégia de fortalecimento do pessoal, é mais uma barreira que você tem que transpor. É mais uma coisa que você precisa lidar: ‘Poxa, por que será que eu estou aqui sozinho? Por que será que não existem outras pessoas como eu aqui nesse lugar? O que é que tem de diferente em mim?’. Eu tive oportunidade de estudar, eu tive uma família que me apoiou, e então isso fez muita diferença na minha vida.” “Eu lembro muito da sensação de chegar e não ter outras pessoas parecidas comigo, e uma sensação que infelizmente ainda hoje é recorrente. Eu ainda continuo chegando e ainda continuo não me encontrando espelhado nesses outros ambientes.” Apesar das dificuldades que enfrentou para se sentir parte do meio em que estava desde o início do curso, Caio salienta que nunca pensou em desistir da medicina. E que depois que se formou, ele percebeu a importância de ocupar o espaço que esteve ocupando.
“Muito pelo contrário (sobre ter vontade de desistir). Acho que esse cenário desigual me fez querer ser um agente dessa transformação, ser mais uma pessoa que está ali nessa luta.
Durante a graduação não foi uma coisa que me levou como objetivo de modo geral, mas depois que me formei, isso me pegou bastante. Eu senti que eu precisava me mexer, precisava fazer alguma coisa ali naquele cenário para fazer um papel que, nem que fosse pequenininho, nem que fosse (só) estar ali. Estar ali já é uma já é uma coisa que que mudava muito.” Se não viu seus semelhantes de pele preta enquanto estava na faculdade, o mesmo continuou a acontecer depois de se formar. E isso tem explicação: em dados publicados em 2020 pelo Conselho Federal de Medicina, pouco mais de 3% dos médicos do Brasil são negros. E a situação tem impacto no dia a dia de Caio – e de vários outros médicos negros. Não foi uma ou duas vezes que ele não foi reconhecido como médico por pacientes – às vezes, até dentro do próprio consultório.
“As pessoas nem sempre me reconhecem de um primeiro momento como médico. Geralmente elas me confundem com outras profissões da área da saúde. Sentado ali no consultório pronto para atender, de jaleco e estetoscópio no pescoço, crachá no peito, e ainda assim quando entraram na sala me perguntaram onde que era o consultório do doutor Caio.” “O problema não é ser confundido com outro profissional da área, o problema é o que isso significa. E como a figura do médico negro é tão inacessível no imaginário das pessoas, ver aquela imagem causa quase que um choque. Então eu sinto que é importante a presença ali”, explica Caio, que aprendeu a reagir a essas situações incômodas que, infelizmente, são menos incomuns do que o esperado. “Hoje em dia, quando eu me apresento em algum ambiente ou quando eu vou receber um paciente, antes de qualquer coisa eu me apresento logo como um médico daquela situação para evitar esse tipo de constrangimento. À medida que vai passando, a gente vai criando esses mecanismos para fugir dessas ciladas. Mas acontece ocasionalmente, infelizmente. E acontece porque na verdade o cenário não está muito diferente, as coisas não mudaram tanto assim." "Lá no imaginário de todo mundo, lá na estrutura da coisa, a figura do médico negro ainda é muito é rara, você procura um médico em determinada especialidade e se alguém não te indicar, você não vai chegar a ter esse profissional. Então hoje ainda é uma coisa relativamente comum de acontecer, mas a gente vai desenvolvendo aqueles mecanismos de defesa, a gente vai construindo as nossas narrativas para conseguir estar naquele lugar, ocupando aquele lugar, sendo um ponto de referência naquele lugar e tentando mudar um pouquinho dessa situação.” Anna Beatriz Lourenço, jornalista da TV Globo, acredita que o papel das empresas é não só falar sobre a inclusão de negros no mercado de trabalho, mas também dar oportunidade e preparação a estes profissionais, e combater o racismo em todas as áreas da sociedade. "A gente está passando por uma fase em que as empresas estão percebendo cada vez mais isso e os próprios profissionais estão enxergando a importância de falar sobre o combate ao racismo e a importância da voz dos profissionais negros. Importante dizer que não há uma preocupação em absorver esses profissionais, mas em prepará-los, assim como os colegas de trabalho, que também precisam lidar com pautas raciais". E Caio concorda com Anna Beatriz. Para tentar combater a falta de representatividade e deixar uma marca na sua profissão, Caio Portela inovou. Por ser um médico de família, o seu consultório tem um desenho diferente dos comuns, mais intimista e sem a tradicional mesa que separa médico e paciente. Assim, ele constrói o seu caminho na profissão que escolheu.
"Não existe possibilidade de se falar em ambiente corporativo hoje em dia sem falar em inclusão e diversidade", disse o médico da família, que encontrou a realização pessoal na profissão onde, espera, abrirá espaço para mais profissionais negros. “A medicina na minha vida, além de ser uma profissão é o lugar que eu encontro conforto. Principalmente atuando com o público que eu atuo, com as questões que eu atuo, que eu consigo realizar, a confiança que as pessoas depositam. Eu me sinto feliz mesmo nessa profissão. Gosto do que faço, gosto dos meus pacientes, não consigo me enxergar fazendo outra coisa que não seja medicina.”
Fonte: G1
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