Você pode achar que teve uma infância “normal” e tranquila, e mesmo assim descobrir na vida adulta que carrega efeitos físicos de experiências negativas das quais nem se lembra mais.
Traumas de infância são mais comuns do que se imagina porque não se restringem a experiências que ameaçam a vida, como violência, abuso ou desastres: podem envolver, por exemplo, necessidades emocionais não atendidas por cuidadores que não sabiam lidar com as próprias emoções.
Há na sociedade uma espécie de “epidemia invisível” em que milhares de adultos tiveram o desenvolvimento emocional interrompido e reagem como se estivessem na infância: são “crianças andando em corpos de adultos em busca do amor que nunca receberam dos pais”. O caminho para a cura é justamente olhar para a sua criança interior, ver do que ela precisa e se dedicar todos os dias a atendê-la.
As frases acima são exemplos do repertório que a psicóloga americana Nicole Lepera compartilha diariamente em vídeos e textos com seus mais de 8 milhões de seguidores nas redes sociais. Em esquetes encenados por ela no Instagram, TikTok e X (ex-Twitter) no perfil @the.holistic.psychologist, Lepera se especializou em entender e explicar como os traumas influenciam a personalidade adulta e o caminho para superá-los.
Psicóloga clínica formada pela Universidade de Cornell com doutorado pela New School for Social Research, ela tornou-se influenciadora e autora best seller a partir de 2018, quando passou a compartilhar sua experiência pessoal de descobrir que as experiências da infância ainda atrapalhavam sua vida todos os dias, e que a psicologia tradicional parecia insuficiente para ajudar a ela ou a seus pacientes.
“Cinquenta minutos de terapia por semana não pareciam ser suficientes para promover mudanças significativas nos hábitos da maioria dos meus pacientes”, diz a psicóloga, que ouvia de seus pacientes que era difícil manter as mudanças de comportamento sobre as quais eles conversavam no consultório.
Foi a partir daí que Lepera desenvolveu um método dentro do que ela chama de “psicologia holística”. “Apenas pensar positivamente não era suficiente. O que estava faltando para mim e que eu mudei, trabalhando agora holisticamente, foi incorporar o corpo, o corpo no qual nossa mente subconsciente foi impressa desde a nossa infância”.
O método que ela ensina em livros e redes sociais integram, além de aspectos da terapia comportamental cognitiva e a psicanálise, práticas que incluem atividades diárias que envolvem escrita, exercícios físicos, meditação, contato com a natureza e principalmente o método da reparentalização, que incentiva que a própria pessoa que viveu o trauma torne-se a figura parental sábia que lhe faltou na infância. A comunidade de Lepera se identifica como “self healers” (ou auto curadores, como se chamam seus fiéis seguidores), e existem até planos pagos para trocar experiências e seguir os conselhos da psicóloga em grupo de maneira mais personalizada.
Em entrevista à BBC News Brasil, Lepera explica tais conceitos, fala sobre como descobriu que sua criança interior não estava bem e rebate as críticas dos que veem em seu trabalho um desincentivo a que mais pessoas procurem ajuda psiquiátrica e a assistência de um psicólogo.
“Eu nunca diria para alguém não fazer terapia, porque não acredito nisso. Penso que quem tem acesso e recursos para achar um profissional de apoio para te ajudar nessa cura que você procura, é extremamente benéfico”.
Leia os principais trechos da entrevista com a psicóloga, autora dos livros How to do the work (Traduzido como “Como Curar Sua Vida” e editado no Brasil pela Editora Sextante) e How to be the love you seek de 2023 e ainda sem previsão de lançamento no Brasil.
“Jamais pensei que eu tivesse trauma de infância”
Lepera sempre considerou ter tido uma infância “normal”. Nascida em uma pacata e unida família de classe média da Filadélfia, nos Estados Unidos, cresceu em um ambiente em que o pai tinha um emprego estável, a mãe era dona-de-casa e ela era a mais nova de três irmãos.
A psicóloga começou a ter crises de pânico aos 20, época em que a mãe enfrentava graves problemas cardíacos, e chegou ao “fundo do poço” aos 30, justamente quando já era formada.
“Mesmo já tendo realizado muitos dos sonhos que eu tinha desde criança - morar na cidade que eu quisesse, ter meu próprio consultório, encontrar um amor - eu ainda sentia que alguma coisa essencial em meu ser continuava perdida”, relembra, acrescentando que sentia também muitos sintomas físicos, como esquecimentos, problemas intestinais persistentes e até desmaios.
“Me senti literalmente em depressão, eu tinha ideias de querer simplesmente fugir da minha vida. Como se eu me envergonhasse o tempo todo, porque quem sou eu para reclamar? Eu tenho a vida que eu pensei que queria, sou próxima da minha família: por que tenho o direito de me sentir mal?”, diz Lepera, que passou a notar até em sua lista de grandes conquistas e excelentes performances uma forma de reagir à experiência de se sentir emocionalmente sozinha na infância.
“Percebi que alguns traumas iniciados na infância continuavam a me afetar todos os dias”.
No caso da psicóloga, a questão que marcou era a solidão emocional que ela sentia, em uma família que não sabia expressar sentimentos nem conversar sobre emoções difíceis; a mãe enfrentava uma doença crônica e a prioridade do pai era sustentar os três filhos financeiramente e ignorar problemas emocionais, repetindo um padrão aprendido por muitas gerações. “Nossa família vivia em estado de evasão emocional”.
Mais traumas do que se imagina
Na visão da psicóloga, o conceito de trauma é mais amplo do que somente experiências que alteram a vida de uma pessoa ou oferecem risco de dano físico, como violência, desastres ou abuso. “Trauma não é apenas o que ocorreu com você. É também o que deixou de ocorrer com você. É o cuidado que você nunca ganhou, ou a proteção que você não teve quando mais precisava”. Nessa ótica, quase todo adulto tem traumas a superar, mesmo que não saiba apontar um evento específico que tenha desmantelado sua vida.
“Sabemos agora que há muitas outras versões de eventos que podem causar um estresse avassalador em nosso sistema. Há muitos ambientes emocional e psicologicamente ameaçadores sob os quais alguns de nós vivemos constantemente desde a infância que criam o mesmo impacto em nossa mente”, afirma, citando o exemplo de pessoas que vivem desde cedo experiências de discriminação, racismo e preconceito por parte da sociedade. “Quando alguém vive em um mundo que além de não ampará-lo é ameaçador, essa pessoa vive em um estado de trauma permanente”.
Outros arquétipos de traumas subestimados que ela cita são crescer com cuidadores adultos que negam a realidade das crianças, que não a ouvem ou enxergam, que não estabelecem limites ou que pressionam a criança por determinada aparência.
Somos todos crianças por dentro?
Um dos conceitos mais populares da metodologia de Lepera é o da criança interior. “Uma epidemia invisível? Milhares de crianças andando em corpos de adultos em busca do amor que nunca receberam dos pais”, afirmou Lepera em um de seus tweets no ano passado. O que significa isso? Que quase todo mundo reage emocionalmente nos mesmos padrões imaturos que aprenderam na época da infância, diz a psicóloga, mesmo que aquela realidade não nos pertença mais.
“A realidade para a maioria de nós é que não tínhamos um ambiente seguro, que nos apoiasse e com cuidadores que estivessem eles mesmos equipados com a capacidade de processar e navegar por suas próprias emoções. Então o que acontece é que continuamos a repetir esses velhos hábitos. E mesmo que envelheçamos biologicamente, ainda regredimos de certa forma para aquelas maneiras que eu chamo de "emocionalmente imaturas", não de uma forma depreciativa, mas apenas em termos de desenvolvimento, de navegar em nossas emoções, que parecem explodir, gritar, gritar ou se desligar, desconectar, a não falar sobre coisas que são difíceis”.
Lepera defende que atualizar a nossa “versão adulta” envolve reconhecer esse padrão e aprender a reagir de novas maneiras, fora do automático.
Incentivo a fugir da terapia?
Lepera fala abertamente sobre as limitações que vê na psicologia tradicional que aprendeu na faculdade e em seu consultório. “Eu achava que seria aquela terapeuta com o divã”, diz. Mas, na visão dela, faltava apoio e atividades para guiar os pacientes nos dias em que eles não estavam na terapia, que era a maior parte do tempo.
Tais opiniões já foram alvo de muitas críticas de psicólogos que veem em sua metodologia que incentiva autocura em frases como “você é seu melhor terapeuta” um desincentivo a quem precisa buscar tratamento, além de responsabilizar a vítima. A crítica mais famosa veio em reportagem da revista Vice, em artigo publicado em 2020 “Everyone's a #SelfHealer: How 'Holistic Psychology' Took Instagram by Storm” (Todo mundo é um ‘auto curador’: como a psicologia holística inundou o Instagram”).
O artigo ouvia psicólogos que afirmavam que as alternativas apresentadas por ela não eram cientificamente comprovadas, como a de que o corpo armazena traumas e a psiconeuroimunologia, o estudo do impacto do estresse no sistema imunológico e vice-versa, “que é teoricamente robusto, mas ainda carece de evidências significativas como método clínico também”, segundo a reportagem da Vice.
Questionada pela BBC, Lepera diz que se trata de uma “interpretação errada” de seu trabalho, que tem por objetivo trazer ferramentas adicionais para quem não tem acesso a apoio psicológico ou mesmo para quem já faz tratamento. “Já me citaram em recomendações para não fazer terapia, e eu jamais diria isso, porque não acredito”. Ela conta que há três anos, ela mesma passou por terapia com a família em meio ao processo de descobrir as dores mal resolvidas da infância, e muitos dos membros de sua comunidade também fazem acompanhamento com um psicólogo tradicional. “Nem todos temos acesso a esses serviços e não sabemos onde procurar ajuda em muitos países. Para essas pessoas, minha esperança é que as ferramentas das quais estou falando sejam integradas à terapia. É uma abordagem colaborativa”.
Dicas para ser “os pais sábios” da sua criança
Outro conceito popular entre os “self healers” é o da reparentalização, que prevê que cada um se torne para si mesmo os pais sábios que não tiveram na infância. “Significa aprender a identificar e cuidar de suas necessidades, tanto físicas quanto emocionais, principalmente as que lhes foram negadas na infância”, diz, destacando que a criança em geral quer ser vista, ouvida e valorizada. Ela cita que muitos adultos descobrem que vivem sob padrões da infância, reproduzindo, por exemplo, o pai interno crítico, negando a própria realidade ou priorizando a necessidade dos outros ao redor em vez das próprias.
O processo, segundo a psicóloga, envolve olhar atentamente para as próprias emoções e reações ao estresse, por meio de exercícios de respiração profunda e observação dos sentimentos. Inclui também estabelecer limites para o que lhe causa estresse e emoções negativas e cumprir promessas positivas diárias para si mesmo, como aprender a dizer não, beber mais água, ler um livro, escrever um diário. Outra recomendação importante é a de redescobrir atividades que causavam encantamento na infância, sem compromisso de ganhar dinheiro ou perfeição: aprender a costurar, estudar um idioma, pintar, cuidar das plantas, elogiar estranhos. “Algo feito por prazer, não por uma recompensa externa”.
Tal esforço em mexer em lembranças antigas pode despertar sentimentos de raiva e tristeza que fazem parte do processo, alerta Lepera; muitos desejam cobrar um pedido de desculpas ou escolhem até mesmo romper com a família, dependendo da situação. “Primeiro é preciso normalizar o sentimento que vem quando chegarmos à consciência de que fomos feridos. É muito natural querer ir até as pessoas que nos machucaram e dizer 'ei, você me machucou bem aqui, reconheça que você me machucou e me peça desculpas”.
Em muitos casos, no entanto, a reação da família pode ser diferente do que se deseja. “A pessoa pode ficar na defensiva, dizer que você está errado, que isso nunca aconteceu. Então a questão é: podemos validar nossa própria realidade e reconhecer que estamos feridos pelo que aconteceu conosco? Não podemos exigir que vejam as coisas da nossa perspectiva. Pergunte-se: preciso mudar a maneira como estou interagindo com esta família, para me sentir mais válido e mais confortável? E isso não significa que temos que nos afastar ou mesmo criar distância (embora isso seja possível também). Talvez precisemos fazer um pouco menos para que possamos cuidar um pouco mais de nós mesmos”.
Fonte: G1
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