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Rivotril: os alertas sobre uso contínuo de remédio 'para emergência'



Disponíveis nas farmácias a partir dos anos 1960, os benzodiazepínicos — classe de drogas da qual fazem parte o clonazepam, o diazepam e o lorazepam, por exemplo — surgiram como uma esperança de tratar ansiedade, fobia social, epilepsia, entre outros quadros psiquiátricos, com menos risco de efeitos colaterais graves.


Passadas algumas décadas, porém, a prática mostrou que o uso dessas medicações, das quais o Rivotril é a marca comercial mais famosa, requer alguns cuidados básicos.

O principal deles está em limitar o consumo desses comprimidos a períodos mais curtos, de poucos dias, ou apenas em situações de emergência, segundo especialistas. “Em suma, os benzodiazepínicos não são nem venenos, nem panaceias universais”, resume o psiquiatra Márcio Bernik, coordenador do Programa de Transtornos de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (IPq-FMUSP). A atenção extra na hora de prescrever e orientar o uso adequado desses remédios tem a ver com o risco de abuso, tolerância e dependência, apontam os entrevistados. Se Rivotril e outros remédios do grupo são tomados de forma contínua, por várias semanas, meses ou até anos, o paciente precisará de doses cada vez maiores para obter o mesmo efeito — além de criar um perigoso vínculo emocional entre a melhora dos sintomas e a necessidade de se medicar com frequência. Procurada pela reportagem, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que mais de 65 milhões de unidades de clonazepam (Rivotril) foram vendidas no Brasil em 2022.

A seguir, você entende como essas substâncias agem no corpo e produzem uma sensação de calmaria — e quais são as situações em que elas realmente estão indicadas, segundo especialistas e bula do medicamento.

Neurônios excitados e inibidos Bernik lembra que, ao longo da História, a humanidade sempre buscou e usou substâncias com efeito sedativo.

“Desde o tempo de xamãs e curandeiros, as pessoas têm uma demanda por produtos que aliviam a dor, auxiliem na interação social, facilitem o sono ou aplaquem a ansiedade.”

Durante boa parte dos séculos 19 e 20, os principais ansiolíticos disponíveis eram os barbitúricos — o antigo gardenal talvez seja o representante mais conhecido dessa classe. “Esses medicamentos eram consumidos em excesso, mesmo numa época em que já se sabia que eles estavam relacionados a envenenamento e alto risco de morte”, lembra o psiquiatra. Uma das vítimas do abuso de barbitúricos foi a atriz e modelo americana Marilyn Monroe (1926-1962).

O desenvolvimento e a popularização dos benzodiazepínicos a partir dos anos 1960, então, representou um grande alívio. “O principal aspecto positivo desses remédios é a segurança, ainda mais quando os resultados deles são comparados aos barbitúricos”, diz Bernik. Mas como essa classe de ansiolíticos funciona? O farmacêutico André Bacchi, professor da Universidade Federal de Rondonópolis, no Mato Grosso, explica que os neurônios funcionam por meio de impulsos elétricos — e é justamente na brecha entre uma célula nervosa e outra que esses fármacos agem.

“Nesse espaço entre os neurônios, conhecido como fenda sináptica, os sinais elétricos são transformados em sinais químicos, mediados por neurotransmissores”, aponta ele.

De forma geral, essas substâncias produzidas pelo organismo têm dois efeitos principais: algumas geram excitação e estímulo, enquanto outras funcionam como inibidores e redutores da atividade cerebral.

Vamos focar na parte inibitória desse sistema, pois é aqui que os benzodiazepínicos atuam. O principal neurotransmissor responsável por “frear” o sistema nervoso é o ácido gama-aminobutírico, ou Gaba na sigla em inglês.

“O Gaba se liga a receptores dos neurônios, que funcionam como um portão na membrana celular. Essa conexão permite a entrada de íons de cloro, que têm carga elétrica negativa e vão diminuir a atividade da célula”, detalha Bacchi.

Mas o que Rivotril e companhia têm a ver com esse sistema? Quando uma pessoa está numa crise de ansiedade ou de epilepsia, por exemplo, o sistema nervoso está excitado além da conta — é por isso que surgem sintomas como o nervosismo exacerbado, a crise emocional ou até o descontrole dos músculos (no caso de uma convulsão). “Os benzodiazepínicos se ligam nas células nervosas e aumentam a afinidade dos receptores pelo Gaba”, aponta o farmacêutico.

Com isso, a ação inibitória desse neurotransmissor é reforçada — e o sistema nervoso tende a entrar nos eixos novamente.

Outra coisa que chama a atenção nessa classe farmacêutica é a rapidez. Os efeitos sedativos podem ser sentidos poucos minutos depois que o comprimido é ingerido (ou colocado debaixo da língua).

Ação generalizada Bernik destaca que o sistema Gaba responde por 40% de todos os neurônios do cérebro. Na prática, isso significa que a ação dos benzodiazepínicos acontece praticamente em todos os cantos da massa cinzenta.

“Isso leva a uma miríade de efeitos, que vão dos esperados aos indesejados”, aponta o psiquiatra.

Ou seja, a pessoa se sente mais calma, mas também vai ter sono, reage menos aos estímulos externos, fica com os músculos muito relaxados, perde uma parte da memória daquele período… Afinal, falamos de remédios com um efeito sedativo de amplo espectro.

E isso já demanda um cuidado: como descrito em bula, benzodiazepínicos lentificam as reações, então o paciente não deve dirigir ou operar máquinas pesadas durante o tratamento. O álcool também é contraindicado, pois as bebidas podem intensificar o efeito sedativo — sob risco até de parada cardiovascular ou respiratória, coma e morte.

Outro alerta relacionado aos remédios desta classe tem a ver com o risco de tolerância e dependência. “O uso contínuo dos benzodiazepínicos leva à perda do efeito terapêutico. Com isso, é necessário aumentar a dose necessária com relativa rapidez”, diz Bacchi.

De acordo com o farmacêutico, é possível notar sintomas de abstinência em paciente que utiliza Rivotril e outros medicamentos do grupo por mais de quatro semanas consecutivas.

“Trata-se de uma questão química do cérebro. Quando tomado de forma constante, o remédio gera uma espécie de deformação nos receptores dos neurônios, que ficam menos sensíveis à ação dele”, detalha Bernik.

Ponderações feitas, quais são as situações em que os benzodiazepínicos podem ser usados com eficácia e segurança? Casos de emergência Na bula do clonazepam, não há menção específica ao tempo limite de uso. Para cada doença (como crises epilépticas, espasmos infantis, transtornos de ansiedade e de humor, síndromes psicóticas, entre outros), há uma indicação específica, e os fabricantes dizem que o uso contínuo, ou a prescrição de uma "dose de manutenção" depende do "critério médico". Bernik diz que essa classe de sedativos não aparece mais como a linha inicial de cuidados contra diversas doenças psiquiátricas. “O principal erro é prescrevê-lo como tratamento único ou como a primeira opção terapêutica”, diz o médico. “Para as fobias, é preciso testar a terapia cognitivo comportamental antes. Para o transtorno de pânico, dá para tentar um antidepressivo em baixa dose mais a psicoterapia. Mesmo para a ansiedade, é possível recorrer aos antidepressivos de baixa dosagem”, exemplifica ele.

O psiquiatra aponta que, neste contexto, os benzodiazepínicos trazem um alívio inicial e momentâneo. “Eles podem ajudar no período de duas a três semanas em que os antidepressivos demoram para começar a fazer efeito.”

“Mas o paciente precisa entender que, depois disso, esse medicamento será retirado”, pontua Bernik.

O psiquiatra relata ter atendido vários pacientes que consomem esses comprimidos há anos e nunca receberam a orientação adequada de quando e como abandoná-los.

“Certa vez, uma paciente me contou que tomava diazepam porque teve uma discussão muito pesada com o marido, e logo depois eles se separaram. Daí ela foi a um posto de saúde e recebeu a prescrição desse medicamento”, relata. “Só que isso aconteceu em 1968 e ela continuou a tomar o remédio por décadas.” Em casos como o dessa paciente, porém, não é indicado fazer a retirada repentina da medicação, segundo os especialistas.

O ideal é buscar um médico para prescrever uma espécie de “desmame”, em que as doses são diminuídas aos poucos, ao longo do tempo, para que os sintomas de abstinência não sejam tão bruscos.

Bacchi reforça a ideia de que os benzodiazepínicos são um recurso de emergência. “Falamos aqui de medicamentos para uso pontual. Eles não tratam o transtorno em si, apenas aliviam os sintomas de uma crise”, diferencia ele.

“Agora, se as crises acontecem o tempo todo e você precisa recorrer às drogas de emergência todos os dias, há algo de errado e é necessário buscar uma avaliação de um especialista”, pondera Bernik. O que dizem as farmacêuticas A BBC News Brasil procurou as farmacêuticas responsáveis pelas marcas citadas ao longo da reportagem para perguntar sobre as ações do medicamento, indicações de uso e efeitos colaterais.

Em nota, a Roche disse que o Rivotril, que foi desenvolvido pela farmacêutica, é “indicado para tratar crises epilépticas, espasmos infantis (síndrome de West), transtornos de ansiedade e de humor, síndromes psicóticas, das pernas inquietas, do equilíbrio e da boca ardente e vertigem, conforme previsto em bula”.

Em janeiro de 2021, a empresa “iniciou o processo de transferência dos direitos relacionados ao clonazepam (Rivotril) globalmente”. Segundo a famarcêutica, no Brasil, esta ação foi concluída em julho do mesmo ano, com a transferência realizada para a empresa Blanver Farmoquímica e Farmacêutica S.A.

“Em tempo, esclarecemos que, devido à validade dos últimos lotes do medicamento produzidos pela Roche, é possível encontrar unidades remanescentes de clonazepam com a embalagem da farmacêutica suíça em alguns pontos de venda”, conclui o texto.

Até a publicação desta reportagem, a Blanver não havia respondido os contatos feitos pelo site oficial da empresa.

Bernik lembra que o tratamento da ansiedade, da depressão e de outras condições psiquiátricas ainda é muito afetado pela forma como esses quadros — e os tratamentos para amenizá-los — são estigmatizados. “A sociedade precisa aceitar de uma vez por todas que as doenças mentais são reais. Não se trata de 'mimimi' ou frescura”, diz ele. “O estresse psicossocial tem um efeito na saúde e precisamos encontrar formas de lidar com isso”, conclui o especialista.


Fonte: G1

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