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Psicobióticos: os remédios feitos de bactérias que prometem tratar ansiedade e depressão



O útero é o lugar mais seguro do mundo. O bebê recebe tudo o que precisa, e fica completamente protegido: a placenta impede a passagem de micróbios. Mas essa limpeza absoluta, que é vital para o bom desenvolvimento do feto, termina no nascimento.


Quando a criança nasce de parto normal, ela recebe um batismo da natureza: ao passar pelo canal vaginal da mãe, é colonizada por diversas espécies de bactéria, que irão formar a sua primeira microbiota, o conjunto de microorganismos que vivem no corpo humano.


Eles são incrivelmente numerosos: um adulto carrega em média 39 trilhões de bactérias (1), e elas vivem em harmonia com os 30 trilhões de células do organismo. Em números, você é mais microbiano do que humano.


São mais de 300 espécies de bactéria, a maioria vivendo no sistema digestivo. E ele tem sua própria rede de neurônios: 500 milhões, distribuídos ao longo de uma faixa que começa no esôfago, percorre todo o intestino e termina no reto. O intestino também produz mais de 30 neurotransmissores, incluindo 50% de toda a dopamina e 90% da serotonina do organismo.


Esse conjunto de neurônios e neurotransmissores forma o “sistema nervoso entérico”, que existe em todos os animais vertebrados e tem uma função primordial: controla o processamento da comida, extraindo energia dos alimentos e expulsando eventuais toxinas.


As bactérias interferem nesse processo (elas podem ajudar na digestão ou causar intoxicação alimentar), mas não só nele: a microbiota também tem influência sobre o funcionamento do coração, do fígado e até do cérebro.


Isso começou a ficar claro em 2011, quando um estudo da Universidade de Cork, na Irlanda, constatou que ratos de laboratório alimentados com bactérias da espécie L. rhamnosus se tornavam mais calmos (2), seu corpo produzia menos corticosterona (um hormônio relacionado ao estresse, equivalente ao cortisol nos humanos) e o córtex cerebral tinha mais GABA, um neurotransmissor ligado ao relaxamento. Desde então, dezenas de estudos encontraram efeitos similares, inclusive em humanos, envolvendo várias espécies de microorganismo.


Em um dos maiores e mais recentes, realizado por cientistas da Universidade de Roma, 142 voluntários foram divididos em dois grupos: metade tomou uma solução contendo nove espécies de bactéria, e a outra metade recebeu placebo (3). O estudo foi do tipo duplo-cego, ou seja, os participantes não sabiam se estavam tomando bactéria ou placebo.


Após três meses de tratamento, a ansiedade – medida pelo Hamilton Anxiety Rating Scale, um teste padronizado – estava 40% menor entre as pessoas que haviam consumido as bactérias. Em suma: os micróbios que vivem no seu intestino podem influenciar o seu estado mental. Você talvez já tenha ouvido falar disso.


A novidade é que cientistas e laboratórios farmacêuticos estão começando a desenvolver os chamados psicobióticos: produtos contendo uma ou mais espécies de microorganismo, escolhidos de acordo com seus supostos efeitos sobre o cérebro.


Em 2014, quando o termo foi cunhado pelos biólogos John Cryan e Ted Dinan (os autores daquele estudo pioneiro da Universidade de Cork), a plataforma PubMed, que compila as principais publicações médicas do mundo, registrou apenas cinco estudos científicos sobre o assunto. No ano passado, foram 55.


Há dezenas de startups farmacêuticas tentando desenvolver tratamentos a partir da microbiota. E várias delas, como as americanas Evelo Biosciences, Axial, Finch Therapeutics e Kallyope (que tem Bill Gates entre os investidores), são focadas em psicobióticos: estão testando tratamentos contra ansiedade, autismo, enxaqueca e Parkinson. A Bened Biomedical, de Taiwan, já comercializa dois psicobióticos: o PS128 e o PS23, que prometem reduzir os níveis de cortisol e regular a produção de serotonina e dopamina.


Mas a líder desse novo setor é a Holobiome, uma empresa de Massachusetts que se gaba (sem trocadilho) de ter coletado o maior acervo de microbiotas do mundo – ela está cultivando, e testando, mais de 70% das bactérias que vivem no sistema digestivo humano. Isso é um feito inédito, pois muitos desses microorganismos são difíceis de manter em laboratório (não sobrevivem fora do intestino).


A Holobiome usa um método curioso para cultivar as bactérias: um simulador do sistema digestivo. A máquina tem cinco compartimentos interligados, que representam pedaços do trato gastrointestinal – um simula o estômago, outro faz o papel de intestino delgado e os seguintes simulam três regiões do intestino grosso.


Um computador controla as variáveis do sistema, mantendo o pH, a temperatura e o volume dos compartimentos em condições similares às do corpo humano. Os cientistas monitoram tudo, e diariamente avaliam a população dos micróbios, a forma como eles colonizam as regiões e como interagem com o que é inserido nelas – como alimentos, suplementos ou outras bactérias, colhidas de voluntários.


“Esse sistema também pode ser utilizado para estudar a composição e o metabolismo de diferentes microbiotas, como a de crianças autistas, de idosos, de indivíduos obesos ou diabéticos”, explica a nutricionista Ana Luiza Duque, da Unesp, que usou um simulador parecido em seu doutorado. Ela queria entender os possíveis efeitos do uso de psicobióticos no tratamento do autismo. E crianças autistas frequentemente têm alterações na microbiota e complicações gastrointestinais, que podem estar associadas a seus sintomas comportamentais.


A ciência também já encontrou uma conexão entre a microbiota e a doença de Parkinson. A levodopa, principal medicamento usado para tratar essa enfermidade, tem um comportamento errático: funciona bem em alguns pacientes, mas gera pouco resultado e muitos efeitos colaterais em outros.


Pesquisadores da Universidade Harvard encontraram a possível razão: a E. faecalis, uma bactéria que vive no intestino, pode converter a levodopa em dopamina, impedindo que a droga chegue ao cérebro (4).


Os cientistas também constararam que o Parkinson provoca alterações gastrointestinais, que aparecem bem antes dos sintomas neurológicos (como tremores e rigidez dos movimentos). Isso sugere que a doença pode estar relacionada a uma disfunção da microbiota, ou “disbiose”.


A dieta cetogênica, que elimina quase todos os carboidratos da dieta, sabidamente reduz a quantidade de convulsões em quem sofre de epilepsia. Um estudo feito em ratos, na Universidade da Califórnia, revelou o motivo (5): essa dieta altera a microbiota e aumenta a quantidade do neurotransmissor GABA no cérebro. Também estima-se que 40% das pessoas com síndrome do intestino irritável tenham ansiedade ou depressão. Em suma: há uma relação entre a barriga e a cabeça. Mas como ela acontece, exatamente?


No final de 2018, a Holobiome deu um passo decisivo para descobrir. Ela publicou um estudo demonstrando (6) que uma bactéria intestinal, a Bacteroides fragilis, produz grandes quantidades do neurotransmissor GABA. Em seguida, os cientistas da empresa entraram em contato com outra equipe de pesquisadores, da Universidade Cornell, que estavam estudando o cérebro de pessoas com depressão severa.


Trabalhando em conjunto, as duas equipes constataram o seguinte: quanto menos B. fragilis uma pessoa tinha no intestino, mais ela apresentava determinada anormalidade cerebral (um desequilíbio elétrico no córtex pré-frontal que é típico da depressão severa).


Foi um grande passo, que chamou a atenção da comunidade científica e da indústria farmacêutica. Em 2019, a Holobiome fechou um acordo de desenvolvimento com a gigante Johnson & Johnson, e no começo deste ano anunciou uma parceria com a multinacional de alimentos Unilever. Nos dois casos, o objetivo é o mesmo: identificar microorganismos que possam ser benéficos.


A Holobiome ainda não começou os testes clínicos em humanos. Mas se tudo der certo, e as criações da empresa se provarem eficazes e seguras, um dia ela poderá oferecer coquetéis de bactérias – que seriam comercializados como remédios ou, mais provavelmente, como suplementos alimentares (que estão sujeitos a uma regulamentação menos rígida).


Esse é o caso do Probians, o primeiro psicobiótico lançado no Brasil – ele foi liberado pela Anvisa no final de 2020. O produto, fabricado no Canadá pela empresa Lallemand Health Solutions e importado pela Apsen Farmacêutica, combina bactérias das espécies L. helveticus e B. longum – e, em dois estudos, se mostrou clinicamente eficaz contra a ansiedade [leia texto abaixo].


Ele não é registrado como medicamento, mas como suplemento alimentar. Essa diferença significa que o produto não pode ser vendido como algo capaz de tratar, prevenir ou curar doenças. “Ele deve ser utilizado de forma coadjuvante, em conjunto com um medicamento [convencional]”, diz Williams Ramos, gerente médico da Apsen.


Segundo ele, o produto (que só deve ser usado com acompanhamento médico) também pode ajudar a reconstruir a microbiota. “Muitos medicamentos causam um desequilíbrio, e o suplemento pode ajudar a recuperá-la.”


A Anvisa tem regras bem específicas para os probióticos (nome dado aos suplementos alimentares que contêm bactérias): há uma lista de microorganismos permitidos, e seus fabricantes devem apresentar evidências de que eles agem da forma prevista (por isso o Probians ainda é o único psicobiótico no mercado brasileiro).


No exterior, a legislação é bem mais frouxa. Nos EUA, por exemplo, o fabricante precisa demonstrar que o suplemento não faz mal – mas não tem de comprovar que ele funciona. Isso gerou uma onda de produtos sem eficácia comprovada, disputando um mercado que já movimenta US$ 45 bilhões por ano.


Além disso, todos os psicobióticos estão cercados por um paradoxo. Sabe aquele monte de neurotransmissores produzidos pelo sistema digestivo, que citamos no começo deste texto? E as tais bactérias do intestino que produzem GABA? Então: a rigor, nada disso deveria ter efeito sobre o cérebro.


É que ele é envolto pela barreira hematoencefálica, um paredão de células que não deixa nenhuma bactéria entrar – e também bloqueia a maior parte das substâncias químicas.


Até o GABA, a serotonina e a dopamina, cujas moléculas são grandes demais para atravessar a barreira. O cérebro fabrica seus próprios neurotransmissores, e não usa os gerados no intestino. Como explicar, então, os efeitos neurológicos relacionados ao sistema digestivo e seus micróbios?


A principal hipótese está em uma estrutura de nome curioso: o nervo vago. Ele tem esse nome porque “vagueia”, fazendo um caminho cheio de desvios, ao longo do corpo. Começa no chamado tronco cerebral, atrás das orelhas, e percorre todos os principais órgãos, chegando até o intestino. O nervo vago é a principal avenida para os sinais do sistema nervoso autônomo, que controla as funções automáticas do organismo (como os batimentos cardíacos, a respiração e a digestão).


E aparentemente também é o responsável pelos efeitos neurológicos das bactérias intestinais. Lembra daqueles ratos de laboratório, citados lá no início deste texto, que receberam doses da bactéria L. rhamnosus e se tornaram mais relaxados? Numa segunda fase da experiência, os cientistas cortaram o nervo vago dos ratinhos – e a bactéria imediatamente parou de fazer efeito. Esse nervo é o caminho da comunicação entre sistema digestivo e cérebro.


O processo parece claro: o intestino e seus micróbios fabricam neurotransmissores, que estimulam os neurônios do sistema digestivo. Aí esses neurônios mandam sinais elétricos, através do nervo vago, direto para o cérebro. Quais sinais são esses, e exatamente o que eles fazem, ainda é um mistério. Inclusive porque cada pessoa tem a sua própria microbiota, contendo proporções distintas de várias espécies de bactéria. E as diferenças começam no instante do nascimento.


“A cesariana interrompe o transporte das bactérias da mãe para o filho”, explica a bióloga brasileira Lívia Hecke Morais. Ela fez doutorado em neurociências na Universidade de Cork, onde trabalhou com os pioneiros da área e realizou um estudo intrigante sobre os efeitos desse tipo de parto – em que o Brasil é disparado o líder mundial.


Utilizando camundongos, Morais constatou que havia uma mudança persistente nos animais paridos por cesariana (7). “Na infância, eles apresentavam dificuldade em reconhecer seu ninho. Na vida adulta, um déficit social: não conseguiam discriminar quem [entre os demais ratos] era familiar ou não”, explica.


A cesárea também parece provocar consequências de longo prazo em humanos. No começo deste ano, Morais e outros cientistas da Universidade de Cork publicaram um estudo (8) demonstrando que adultos nascidos por cesariana são mais sujeitos ao estresse agudo.


Os 76 voluntários encararam uma bateria de testes cognitivos, preencheram questionários sobre humor, ansiedade e percepção de estresse. Os cientistas colheram amostras de saliva, sangue e fezes para analisar o sistema imunológico, a microbiota e os níveis de cortisol (hormônio do estresse) dos voluntários. Quem tinha nascido de cesárea se mostrou sistematicamente mais vulnerável ao estresse.


Um detalhe instigante: os dois grupos tinham microbiotas similares, formadas pelas mesmas bactérias. Elas foram se igualando ao longo da vida. Isso sugere que o efeito prejudicial da cesariana (se de fato houver um) talvez se manifeste logo após o nascimento, quando o cérebro ainda está em desenvolvimento.


Um estudo comparou a microbiota de bebês chineses nascidos de parto normal ou cesariana (9) – e constatou que, durante os primeiros três meses de vida, as crianças que nascidas por cesárea tinham mais bactérias Clostridium, Enterococcus e Klebsiella, e menos Bacteroides fragilis – justamente a bactéria que, conforme descoberto pela Holobiome, produz o neurotransmissor GABA.


Esse tipo de diferença ilustra bem o seguinte: a microbiota ainda é um terreno largamente desconhecido, e isso atrapalha bastante o desenvolvimento de psicobióticos. Cada indivíduo carrega proporções diferentes de bactérias, com mais micróbios de algumas espécies e menos de outras.


Isso significa que um produto que faz bem para uma pessoa pode não funcionar, ou até ser nocivo, em outra. “As pesquisas envolvendo psicobióticos avançaram e têm resultados promissores, mas ainda estão concentradas na área acadêmica, em universidades. É preciso cautela”, afirma Ana Luiza Duque, da Unesp.


Em geral, os especialistas concordam no seguinte: não parece haver uma fórmula para manter uma microbiota saudável. Foi o que constatou um metaestudo (que avalia outros trabalhos científicos) publicado por pesquisadores chineses em 2019. Eles analisaram 3 mil artigos sobre o microbioma (10), e encontraram 21 testes clínicos realizados com psicobióticos.


Onze testes, ou 52% do total, tiveram êxito no controle da ansiedade – nos demais, não houve efeito. Isso não significa que o desenvolvimento desses suplementos deva ser abandonado. Pelo contrário: mostra que ainda é preciso avançar bastante nos estudos a respeito.


Também há outra questão envolvendo as tentativas de ajustar a população de micróbios do organismo. Um estudo realizado em Israel mostrou que, em algumas pessoas, a microbiota acabava eliminando as bactérias novas que eram introduzidas (11). Ou seja: os psicobióticos podem perder o efeito com o tempo.


E aí, talvez, o caminho seja voltar um pouco. Em vez de buscar uma forma de resolver o problema rapidamente, com um comprimido, entender o que pode ter feito aquele desequilíbrio ocorrer: como a sua alimentação.


Hoje, se você tiver algum problema psicológico, é pouco provável que o médico vá sugerir uma alteração na dieta para ajudar a resolvê-lo. Mas não se surpreenda se essa recomendação começar a aparecer nos próximos anos. “Conseguimos modificar nossa microbiota tendo uma alimentação saudável e balanceada, com legumes, verduras e frutas”, diz Dan Waitzberg, professor de medicina da USP e especialista em aparelho digestivo.


As bactérias benéficas também costumam estar presentes em alimentos lácteos ou fermentados. Por exemplo: a B. longum e a L. helveticus, que compõem o Probians, podem ser encontradas em alimentos como leite, iogurte, alguns tipos de queijo (como o emental e o gruyère), azeitonas e picles em conserva.


A quantidade desses micróbios presente na comida é muito menor do que nos suplementos, mas em tese tudo bem: as bactérias são capazes de se reproduzir no intestino até alcançar um nível de equilíbrio.


Há mais de um século a medicina tenta descobrir como melhorar a microbiota humana. Ilya Metchnikoff, pesquisador russo que ganhou o Prêmio Nobel em 1908 por seus trabalhos sobre o sistema imunológico, já falava em “substituir os micróbios danosos por outros úteis”.


Ele teve essa ideia após observar um grupo de búlgaros com longevidade acima da média – algo que Metchnikoff atribuiu às bactérias presentes num iogurte típico que eles consumiam. De lá para cá surgiram inúmeros produtos, a maioria sem eficácia comprovada, que prometem alterar a população de bactérias do organismo.


Só recentemente, com as descobertas sobre a conexão cérebro-intestino, isso despertou o interesse da indústria farmacêutica – e os probióticos e psicobióticos finalmente começaram a ser estudados com o rigor necessário.


A incerteza nos resultados mostra que ainda há um longo caminho pela frente. Mas vale a pena percorrê-lo. Ao longo dos últimos 100 anos, a medicina avançou esquadrinhando os mínimos detalhes do corpo humano. Agora, tem diante de si um campo ainda maior e mais misterioso: os 39 trilhões de pequenos invasores que fazem parte de nós.


Fonte: SuperInteressante

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