Durante o doutorado, a cirurgiã-dentista Laís Valencise Magri resolveu testar uma terapia à base de laser para o tratamento de dores que atingem a face.
Para isso, ela selecionou algumas mulheres que tinham o incômodo e as dividiu em duas turmas: a primeira recebeu o tratamento “de verdade”, com laser, enquanto a segunda até tinha contato com o aparelho emissor de luzes, mas sem nenhuma ação terapêutica. Detalhe importante: nem voluntários, nem pesquisadores, sabiam quem fazia parte de cada grupo. Ao final do experimento, o mistério foi desfeito e todos os envolvidos passaram a saber quem de fato recebeu o laser ou uma luz sem ação terapêutica. Mas a dentista resolveu fazer um novo teste na hora da revelação. Para metade do grupo, Magri primeiro perguntava como estava a dor na face — e só depois revelava se a pessoa havia feito o tratamento com laser ou não.
Para a outra parcela dos participantes, a estratégia foi contrária: ela dizia logo de cara o tipo de tratamento feito (laserterapia ou luz), para na sequência questionar se o incômodo no rosto havia melhorado.
“Queríamos ver se o conhecimento sobre a modalidade recebida influenciava na percepção imediata da dor”, aponta a dentista, que trabalha na Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (Forp-USP). E nós vimos que sim: quando a paciente sabia antes que não havia passado pelo laser, ela dizia estar com mais dor em comparação com as situações em que essa informação só era dada depois. — Laís Valencise Magri “O mesmo aconteceu no grupo do tratamento ativo: se a voluntária sabia antes que recebeu o laser, ela tendia a relatar menos dor.”
O trabalho de Magri é um exemplo clássico de um fenômeno que até hoje intriga a Ciência e a Medicina: o efeito placebo.
O conceito, que tem uma série de definições e foi envolvido em diversas polêmicas, ajuda a descrever como substâncias ou intervenções que não tem uma ação terapêutica conhecida podem funcionar na prática e gerar uma melhora de sintomas que afligem o corpo e a mente — até em bebês e animais de estimação. Não deveria funcionar — mas funciona… O placebo tem uma série de definições segundo o contexto em que ele aparece. Na área da saúde, o fenômeno pode servir como uma medida de comparação para estudos que avaliam novos tratamentos. “A ideia aqui é criar uma situação em que vou testar o efeito de uma intervenção, como um novo remédio. Daí, para um grupo, eu dou a medicação de fato e, para outro, ofereço as chamadas pílulas de farinha”, explica a psicóloga Edna Kahhale, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
💊Nesse contexto dos testes clínicos, a expectativa é que o novo produto farmacêutico tenha um efeito superior ao tal placebo — caso o resultado seja igual ou inferior, isso significa que o medicamento não funciona como esperado. Idealmente, essa divisão dos voluntários entre os grupos deve ser aleatória (ou randomizada), e nenhuma das partes envolvidas com esse teste clínico — cientistas ou voluntários — deve saber quem recebeu tratamento ou placebo (o que é chamado no jargão científico de “duplo cego”).
Há um consenso na área de que o simples fato de se saber quem faz parte de qual grupo pode influenciar e enviesar os resultados obtidos ao final do experimento. Tanto pesquisadores quanto participantes podem subestimar ou superestimar os efeitos, especialmente quando os parâmetros avaliados são subjetivos, como a percepção de dor. Alterações concretas Os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil destacaram outra confusão frequente que envolve o placebo: muita gente acredita que esse efeito é falso e não altera em nada o organismo de uma pessoa.
🧠Mas não é bem assim. “Estudos com ressonância magnética [um tipo de exame de imagem] mostram que o placebo pode ativar áreas do cérebro de forma muito similar ao que acontece quando um tratamento farmacológico convencional é utilizado”, destaca Magri. Ou seja: até certo ponto, o efeito placebo é concreto e pode produzir algumas mudanças observáveis no corpo, mesmo que limitadas. O mesmo vale para o “primo-irmão” dele: o efeito nocebo, que acontece quando o indivíduo desenvolve sintomas e efeitos colaterais pelo fato de ter ciência que isso pode ocorrer diante de determinado tratamento ou doença. Em pesquisas que envolvem quimioterápicos contra o câncer, por exemplo, alguns voluntários têm enjoos e náuseas por já saberem de antemão dos possíveis efeitos colaterais desse tipo de intervenção, mesmo que tenham tomado uma substância placebo. — Laís Valencise Magri 🧑⚕️Outro exemplo aqui é a chamada “hipertensão do jaleco branco”, em que algumas pessoas apresentam um aumento da pressão arterial quando estão diante de um médico e ficam nervosas com isso. Bebês e animais Um aspecto que chama a atenção neste debate é como o efeito placebo influencia bebês e animais, que teoricamente não têm clareza sobre o tipo de intervenção que estão recebendo para tratar um determinado incômodo — e, portanto, seriam menos influenciáveis na hora de avaliar possíveis melhoras.
👶🐶Mas o fenômeno também pode acontecer com eles, por diferentes caminhos. Magri cita as clássicas pesquisas sobre condicionamento feitas pelo fisiologista russo Ivan Pavlov no início do século 20.
🛎️Em resumo, ele tocava uma sineta toda vez que dava comida aos cachorros. Com o passar do tempo, Pavlov percebeu que o simples fato de tocar a sineta, mesmo sem oferecer uma refeição, já fazia com que os cães salivassem. Ou seja, uma intervenção sem nenhuma ação direta no corpo (o som de uma sineta) era capaz de produzir uma alteração no organismo (a produção de saliva); “Posteriormente, outros estudos com ratos, que recebiam injeções de medicamentos que inibem o sistema imunológico, viram que o mesmo efeito [sobre as células de defesa] era obtido depois de um tempo, mesmo que eles recebessem uma solução salina, sem nenhum fármaco”, aponta Magri. No caso das crianças, o efeito placebo também é observável na prática. É o típico caso das mães que dão um beijinho no machucado dos filhos para eles se sentirem melhor. A própria expectativa de uma melhora já pode surtir algum resultado. — Lais Valencise Magri
Mas é preciso ponderar que a existência do efeito placebo em crianças pequenas e animais ainda é alvo de um extenso debate entre especialistas.
O médico veterinário Danny Chambers, do Colégio Real de Cirurgiões Veterinários do Reino Unido, cita o chamado “efeito do cuidador”.
“Vamos imaginar o caso de um cachorro com artrite, que apresenta dor e rigidez. Se você der um remédio que comprovadamente não funciona, como um homeopático, pode pensar que o animal melhorou pelo simples fato de você esperar que aconteça uma melhora”, diz ele.
“Nós sabemos que doenças crônicas melhoram ou pioram ao longo de dias, semanas e meses. O cachorro pode sentir mais dor e rigidez num dia frio ou após realizar uma caminhada longa”, exemplifica o veterinário. Mas, na manhã seguinte, ao ser cuidado e fazer um repouso prolongado, a tendência é que os incômodos sejam aliviados — independentemente de qualquer remédio utilizado. Só que a tendência é que o tutor vincule o alívio dos sintomas a uma intervenção farmacológica, mesmo que ela não tenha nada a ver com isso. Em outras palavras, o “efeito do cuidador” está mais nos olhos de quem observa aquele paciente, na esperança de notar qualquer avanço. Placebo como arma O antropólogo Mário Saretta Poglia, que estudou o efeito placebo durante o doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), opina que o fenômeno passou a ser usado de forma problemática e com um certo moralismo em tempos recentes. “O uso do termo ‘efeito placebo’ virou uma categoria de acusação da Ciência ocidental para práticas ancestrais e tradicionais de outros povos”, critica ele, que atualmente é professor da Universidade Estadual do Paraná. O efeito placebo virou um ponto de passagem obrigatório para entender a Medicina baseada em evidências e a pretensão das Ciências Médicas. — Mário Saretta Poglia
O pesquisador entende o placebo como uma marca da racionalidade científica, mas se vê “preocupado com a multiplicidade e a legitimidade de diferentes procedimentos terapêuticos”.
“E a própria ciência e os pesquisadores não conseguem chegar a um denominador comum sobre o que é o efeito placebo”, pontua ele.
Poglia entende que é preciso produzir “uma ética em torno do efeito placebo” para entender melhor “a ligação do ser humano com o ambiente” Dá pra tirar vantagem? Mas sabendo que o efeito placebo acontece — e pode produzir mudanças palpáveis no corpo — será possível tirar proveito dele?
Numa primeira análise, não faz sentido que profissionais da saúde prescrevam deliberadamente “pílulas de farinha” ou outros tratamentos comprovadamente ineficazes, apontam os especialistas. Há uma questão ética e legal aqui. No consultório, só devemos usar práticas que tenham comprovação científica e baseadas em evidências. — Lais Valencise Magri Mas isso não significa que certos aspectos do efeito placebo não possam ser usados na prática — e alguns deles já fazem parte do dia a dia de profissionais de saúde (e até da própria indústria farmacêutica).
“Sabemos que até a cor do comprimido pode influenciar no resultado. Os azuis tendem a causar um efeito calmante, por exemplo. O tamanho da pílula é outro fator: as maiores são vistas subjetivamente como mais efetivas. O mesmo vale para o preço: medicações mais caras podem surtir um resultado maior do que genéricos baratos em alguns indivíduos”, cita Magri.
Segundo a pesquisadora, algumas investigações sugerem que até a presença de diplomas pendurados na parede de um consultório acabam influenciando na confiança do paciente em determinado tratamento.
“Mesmo a forma que um diagnóstico é comunicado pode ter um impacto aqui. O paciente de um médico que apresenta os fatos de forma otimista tende a se sentir melhor em comparação com aquele que recebe a notícia de forma passiva ou não esperançosa”, diferencia ela.
Na visão da pesquisadora, a forma como profissionais da saúde se comunicam pode fazer toda a diferença — e representam uma boa forma de se aproveitar de um fenômeno tão comum e fascinante quando o placebo.
Fonte: G1
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