O que os microplásticos estão fazendo com nossos corpos? Cientistas estão tentando descobrir
- Portal Saúde Agora
- 21 de abr.
- 6 min de leitura
Em um laboratório no porão da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, Marcus Garcia revirava uma caixa cheia de resíduos plásticos. Ele passou por garrafas, pedaços de rede de pesca, uma escova de dentes, um copo com um personagem do Pokémon e um boneco do G.I. Joe. Quando de repente gritou "Encontrei", segurando a ponta descartada de uma pipeta.
Garcia, pós-doutorando em ciências farmacêuticas, encontrou a ponta de pipeta no semestre passado com colegas em uma praia remota no Havaí. Estava intacta, embora provavelmente tenha se degradado pelo tempo sob sol, ozônio e mar. Para ele, foi comovente: era um objeto usado diariamente por ele e milhares de outros cientistas. E ali estava ela, levada pela maré, junto com centenas de quilos de outros resíduos plásticos que agora estavam limpando e coletando para pesquisa.
Ele integra um dos laboratórios líderes na área, dirigido pelo toxicologista Matthew Campen, que estuda como partículas minúsculas conhecidas como microplásticos se acumulam em nossos corpos. O estudo mais recente do grupo, publicado em fevereiro na revista Nature Medicine, gerou manchetes alarmadas e debate na comunidade científica: eles descobriram que amostras de cérebro humano de 2024 continham quase 50% mais microplásticos do que amostras de 2016.
— Essa coisa está aumentando exponencialmente no mundo — disse Campen. À medida que se acumula no ambiente, também se acumula em nós.
Outras descobertas da equipe também causaram preocupação. No estudo, cérebros de pessoas com demência continham significativamente mais microplásticos do que cérebros de pessoas sem a doença. Em artigos publicados no ano passado, os pesquisadores mostraram que os microplásticos estavam presentes em testículos e placentas humanas. Outros cientistas já os identificaram no sangue, sêmen, leite materno e até no primeiro cocô de um bebê.
Em fevereiro, com colegas do Baylor College of Medicine e do Hospital Infantil do Texas, nos EUA, o laboratório de Campen divulgou pesquisas preliminares mostrando que as placentas de bebês prematuros continham mais microplásticos do que as de bebês nascidos a termo, ou seja, entre 37 e 42 semanas completas de gravidez — apesar de terem tido menos tempo para acumular essas partículas.
Mas, apesar de todos os lugares em que encontraram microplásticos — e de todas as preocupações sobre os riscos à saúde —, ainda havia muito que os pesquisadores não compreendiam. A primeira coisa que toxicologistas aprendem é que “a dose faz o veneno”:
qualquer substância, até água, pode ser tóxica em quantidade suficiente. Mas Campen e Garcia não faziam ideia de qual quantidade de microplástico seria suficiente para causar problemas à saúde. E com tantos plásticos ao nosso redor — na comida, nas roupas, no ar —, qual seria a fonte mais ameaçadora?
Caçando plásticos
No laboratório principal da equipe, um armário guardava amostras de cérebros, fígados, rins, artérias e órgãos sexuais. Garcia abriu um pote rotulado como “DB” — de “dementia brains” (cérebros com demência) —, que liberou um cheiro familiar a quem já esteve em um laboratório de anatomia: formol. Com uma pinça, retirou um pedaço de tecido cerebral e o colocou em uma placa de petri. Parecia um pedaço de tofu, com uma massa cinza espessa ao redor de uma faixa branca estreita.
No artigo, os pesquisadores relataram que a concentração média de microplásticos em 24 cérebros humanos de 2024 era de quase 5 mil microgramas por grama. Isso equivale a cerca de sete gramas de plástico por cérebro — o equivalente a uma colher descartável ou cinco tampinhas de garrafa, segundo Campen. Cérebro de pessoas com demência tinham mais plástico, possivelmente porque essas pessoas têm barreiras hematoencefálicas (espécie de filtro entre o sangue e o érebro) mais porosas, o que dificulta a eliminação de toxinas.
Ainda não está claro o impacto dessa quantidade de plástico na saúde humana, mas é suficiente para gerar alarme.
— Não conversei com ninguém que tenha dito: ‘Fantástico! Adoro saber que há todo esse plástico no meu cérebro — brincou Campen.
Agora, sua equipe estuda cortes transversais de um único cérebro para descobrir se certas regiões acumulam mais microplásticos — e se isso pode estar ligado a doenças como Parkinson ou perda de memória. Idealmente, ele gostaria de comparar com cérebros anteriores às décadas de 1960 e 1970, quando o uso de plástico ainda era limitado.
— Você pode imaginar um museu antigo com um cérebro flutuando num pote. Eu realmente preciso de um desses — disse ele.
Esses experimentos são caros e demorados. Amostras de cérebro são difíceis de conseguir. As máquinas que analisam os plásticos custam cerca de US$ 150 mil (aproximadamente R$ 871 mil) cada.
No entanto, esses estudos permitiram que Campen chegasse a conclusões inéditas. Ele acredita que os microplásticos em nossos corpos são muito menores do que se imaginava — o que explicaria como conseguem ultrapassar barreiras naturais e alcançar os órgãos. Ele confirmou isso com um microscópio de alta resolução: revelou fragmentos em forma de lascas, com no máximo 200 nanômetros de comprimento — cerca de 400 vezes mais finos do que um fio de cabelo — e tão finos que eram translúcidos. Estudos anteriores usaram microscópios que só enxergavam partículas 25 vezes maiores.
Para Campen, documentar partículas tão pequenas pode transformar completamente o entendimento sobre a presença dos plásticos em nossos corpos — como entram, para onde vão e que danos causam.
Voltando décadas no tempo
Os cientistas ainda não sabem com certeza como esses plásticos entram em nossos corpos, mas têm pistas. Eles sabem que resíduos plásticos acabam no solo, na água, no ar e até na chuva, diz Christy Tyler, professora de ciência ambiental no Instituto de Tecnologia de Rochester.
Os plásticos podem ser incorporados às plantas e concentrados ao subir na cadeia alimentar. Eles estão em nossas roupas, tapetes, sofás e potes de comida — realmente, estão em toda parte — disse Tyler.
As características dos plásticos encontrados pela equipe de Campen sugerem que vieram de resíduos descartados há muitos anos e desgastados com o tempo. Os pesquisadores identificaram muito polietileno — tipo de plástico dominante na década de 1960 — e menos do tipo usado em garrafas de água, popularizado nos anos 1990.
Como a produção de plásticos dobra a cada 10 ou 15 anos, mesmo que ela fosse interrompida hoje, já há tanto plástico em circulação que o acúmulo ambiental e corporal deve continuar por décadas.
Campen suspeita que a principal via de entrada no corpo é a ingestão, muito tempo após o descarte e degradação dos materiais. Ele se preocupa menos com os chamados “plásticos frescos”, como os que se soltam de tábuas de corte e garrafas durante o uso, por serem maiores e mais novos — e o corpo aparentemente elimina alguns deles.
Essa visão é considerada “não convencional”, reconhece Campen. Outros cientistas defendem que ainda é importante reduzir a exposição. Plásticos podem liberar partículas ao serem aquecidos no micro-ondas ou ao entrarem em contato com alimentos, e estudos com animais sugerem que essas partículas podem ser prejudiciais, afirma Tracey Woodruff, diretora do programa de saúde reprodutiva e meio ambiente da Universidade da Califórnia, em São Francisco.
— Talvez a maior parte venha dos plásticos degradados, mas isso não significa que você não esteja exposto aos plásticos frescos — disse Woodruff. Partículas maiores ainda podem afetar o intestino "o que pode impactar o corpo inteiro" acrescenta Campen.
Químicos perigosos e os próximos passos
Cientistas também acreditam que certos compostos presentes nos plásticos como ftalatos, bisfenol A e retardadores de chama, podem ser nocivos à saúde humana.
— Há muitos anos de estudos ainda por vir, — disse Woodruff. —Mas já temos ciência suficiente para dizer: Eu sei que não quero ser exposto a mais plásticos — completou.
Estudo sobre os efeitos do plástico no corpo humano
Tyler diz que o laboratório da Universidade do Novo México está fazendo o melhor trabalho possível em um campo tão recente.
Como toda ciência inicial, há ressalvas. Essas partículas são extremamente difíceis de medir. Nenhum outro grupo ainda repetiu os experimentos. A grande dúvida é se tudo que estão medindo realmente é plástico — ou se parte não seriam lipídios (moléculas de gordura que desempenham várias funções essenciais no corpo humano e nos organismos em geral), que têm semelhanças químicas e ocorrem naturalmente no corpo.
— As estimativas que eles têm para o cérebro parecem altas —disse Woodruff. — Mas mesmo que sejam, isso não invalida a descoberta de que há mais plástico ao longo do tempo — o que é consistente com o aumento da produção global.
Enfrentando os riscos à saúde
Há uma pergunta que Campen e Garcia acreditam estar começando a responder com confiança: quanto plástico há em nossos corpos?
Agora, eles querem explorar ligações entre certas doses e efeitos na saúde humana como doenças cardíacas, problemas de fertilidade e esclerose múltipla. E estão começando um experimento com animais para entender quais doses podem ser prejudiciais.
A estudante de farmácia Teya Garland iniciou esse processo no laboratório. Usando máscara para evitar inalar partículas, ela inseriu pedaços de plástico — parecidos com giz colorido — em uma máquina que congelava e pulverizava os fragmentos. Depois, os pesquisadores alimentarão camundongos com diferentes quantidades e tipos de microplásticos, e estudarão os efeitos em seus cérebros e comportamentos.
Esses fragmentos vieram da praia no Havaí, onde Garcia e outros coletaram 800 quilos de lixo plástico e 225 quilos de redes de pesca. Voluntários locais recolhem essa quantidade a cada poucas semanas.
— Uma coisa ver uma foto — disse Garcia, olhando para tela do seu celular — mas ver de perto, estando lá... abre os olhos. Cada uso imaginável do plástico, embalagens, garrafas de água sanitária, bitucas de cigarro, sacolas plásticas e até material de laboratório estava representado naquela praia e no oceano ao redor. E todos os dias, aquilo se fragmentava, ficando cada vez menor. Um dia, parte disso pode acabar dentro de nós.
Fonte: O Globo
留言