
— Se sua torrada queima pela manhã, o tempo que você gasta para fazer outra pode acabar salvando você de um acidente de carro ou fazendo você se atrasar para uma reunião. Mas, devido ao atraso, você encontra no caminho alguém desconhecido que se tornará especial em sua vida. É um lembrete de que o universo sempre está conspirando a nosso favor — escreveu um usuário anônimo no Twitter.
Catalogada como a “teoria da torrada queimada”, essa reflexão se espalhou por diversas plataformas e, desde então, tornou-se um tema que desperta discussão: há aqueles que acreditam que o que está descrito nessas linhas é verdadeiro, assim como os que consideram que esse tipo de crença não tem fundamento.
Ao analisar as opiniões das pessoas interessadas no tema, surgem considerações relevantes sobre a experiência humana. Entre os relatos mais comuns, há aqueles que afirmam que um pequeno inconveniente, como uma torrada queimada − que pode causar raiva ou mau humor −, pode estar, na verdade, salvando a pessoa de algo indesejado. “Se acontece, é porque convém”, diz a famosa frase usada por pessoas resilientes ou que enfrentam obstáculos diariamente.
Outra perspectiva dessa teoria sugere que, metaforicamente, quando alguém queima acidentalmente o que ia comer, pode “dar um jeito”, raspando as partes queimadas ou buscando outra alternativa de comida na cozinha. Algo parecido com entender que, quando algo falha ou não sai como esperado, sempre há um substituto ou solução.
São experiências comuns que acontecem com todo mundo. No entanto, no momento em que ocorrem, a pessoa pode sentir que “o mundo está desmoronando” porque, paradoxalmente, depois dessas situações indesejadas, costuma surgir um problema atrás do outro.
Alguém se atrasa para o café da manhã e isso faz com que esqueça de passar a roupa para o trabalho. Ao refletir se vale a pena voltar para casa para resolver isso, na correria, percebe que o transporte que o levaria ao trabalho acabou de passar. Nessa situação, pode-se pensar que, depois de toda essa sequência de dificuldades, outro contratempo é a última coisa de que se precisa. Mas, seguindo a teoria da torrada queimada, outro problema pode ser exatamente o que era necessário.
— A ideia da ‘torrada queimada’ leva o indivíduo a escolher entre lamentar-se ou revitalizar-se. O desafio que ela propõe não é apenas pessoal, mas também social: hoje em dia, o ideal pós-moderno evita a angústia ou a tristeza, ao mesmo tempo em que oferece gratificações instantâneas e facilitadas — explica a psicóloga Victoria Almiroty.
Segundo a psicóloga, essa metáfora viral pode ser interpretada como “aprender a viver com a falta”. — Jacques Lacan − psiquiatra, filósofo e psicanalista francês − argumenta que a falta é inerente à condição humana e que o desejo surge dessa carência fundamental", diz.
— Aprender a viver com a falta implica reconhecer que o desejo nunca pode ser completamente satisfeito e que a busca pela completude é ilusória. — acrescenta Almiroty.
A teoria também foi utilizada pela atriz e comediante norte-americana Teri Garr em seu livro Speedbumps: Flooring It Through Hollywood ( Quebra-molas: Acelerando através de Hollywood, em tradução livre). Em sua obra, Garr incentiva as pessoas a abraçarem a realidade de suas vidas e a deixarem de lado expectativas irreais.
— Embora a sociedade muitas vezes atribua grande valor à perfeição e ao sucesso, a imperfeição pode ser igualmente bela e significativa — diz. E acrescenta: — Ao aceitar os defeitos e aproveitar as pequenas coisas, podemos encontrar satisfação nos momentos imperfeitos da vida. —
Almiroty propõe que, em relação ao conceito de “falta” desenvolvido por Lacan, a verdadeira satisfação vem de abraçar e compreender essa insuficiência, permitindo desenvolver uma relação mais autêntica consigo mesmo e com os outros.
“Essa carência pode ser vista como um motor para a criatividade e a inovação. Quando enfrentamos o incompleto, somos impulsionados a buscar soluções e alternativas novas, fomentando assim o pensamento criativo e a busca por formas originais de enfrentar desafios”, acrescenta Almiroty.
Segundo Aristóteles, tudo que acontece no universo tem um propósito: ajudar o intelecto. De acordo com alguns dos ensinamentos do filósofo grego, as experiências são projetadas para moldar, definir e transformar uma pessoa na melhor versão de si mesma.
Uma pesquisa realizada pelo Laboratório de Mente e Desenvolvimento da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, pediu aos participantes que refletissem sobre eventos significativos em suas vidas, como formaturas, nascimentos de filhos, paixões, mortes de entes queridos e doenças graves. A maioria dos participantes religiosos respondeu que acreditava que esses eventos aconteceram por uma razão e que foram planejados (presumivelmente por Deus). Mas o surpreendente foi que os ateus responderam de forma semelhante; eles acreditavam no destino, definido como a visão de que os eventos da vida acontecem por um motivo e que existe uma ordem subjacente determinando como as coisas ocorrem.
Ao ser consultado pelo centro de pesquisa da universidade, o professor de psicologia da Universidade de Yale, Paul Bloom, explicou que a semelhança dessas crenças entre religiosos e não religiosos se deve a uma necessidade emocional. “É muito reconfortante pensar que, quando coisas ruins acontecem, há um propósito subjacente por trás delas. Existe um lado positivo ou um plano”, afirma. Ele explica que essa reflexão − agora apelidada de “teoria da torrada queimada” − é uma forma de combater e negar a ideia de que o mundo pode ser um lugar cruel, onde coisas boas e ruins simplesmente acontecem, uma após a outra. — Essa ideia assusta muitas pessoas — acrescenta Bloom.
Dessa forma, acreditar que o caos tem um propósito permite às pessoas dar um passo atrás e olhar para suas vidas com uma perspectiva diferente, na qual podem distinguir entre o que tem significado e o que não tem.
Em uma coluna de opinião para a revista Psychology Today, a pesquisadora da Universidade de Toronto, Mariana Bockarova, escreve: “Isso é produtivo quando conseguimos reestruturar nosso passado, presente e futuro de maneira saudável, compreendendo o que deu errado e reconfigurando nossa história em consequência disso. No entanto, quando não conseguimos alcançar esse fechamento, as tentativas de entender o que aconteceu inundam nossa concepção do passado, presente e futuro”.
De acordo com Bockarova, esse fenômeno pode ser chamado de “mecanismo de enfrentamento”. E, embora alguns possam não encontrar sentido nisso, olhar para a vida sob essa ótica ajuda a enxergar que os acontecimentos têm um propósito: permitir que sigamos em frente e nos tornemos melhores.
Fonte: O Globo
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