
Mesmo desaconselhada por especialistas e vetada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) fora de estudos clínicos controlados, a ozonioterapia ganha tração no Brasil. Clínicas especializadas oferecem o serviço em diversas localidades, a exemplo do Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Nesses locais, defende-se que a prática oferece mais de 200 benefícios aos usuários e colabora para a melhora da saúde ou bem-estar de pacientes que sofram diferentes doenças: de autismo a câncer.
É, contudo, de uma prática irregular pois todas as máquinas de ozônio liberadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) possuem uso autorizado apenas para fins estéticos (como na limpeza de pele) e na odontologia. Em nota, a agência informou à reportagem que “atualmente, não existem equipamentos de ozonioterapia com finalidade terapêutica ou preventiva médica regularizados junto à Anvisa. No caso de produtos com indicações de uso diferentes daquelas já aprovadas pela Anvisa, a situação é irregular”.
Se esse uso irregular for identificado — por vigilâncias santitárias regionais em fiscalizações— o estabelecimento poderá ser multado e fechado, diz a Anvisa. Na internet, porém, é simples encontrar diversos endereços que ofereçam a terapia.
A aplicação pode ocorrer de diversas maneiras. Uma delas é "ozonizar" água ou óleo e aplicar a solução diretamente na pele. Também há a aplicação retal, por meio de sonda. Outro método é inserir, por meio de uma seringa com agulha, diretamente nas articulações. Outro método — incomum no Brasil, porém, usado no exterior — é a aplicação diretamente nos ouvidos, com o auxílio de um aparelho que lembra um estetoscópio médico. O gás utilizado nessas clínicas passa por máquinas que preparam a mistura do ozônio com o oxigênio medicinal.
A justificativa para seu uso, seria que a ozonioterapia tem três mecanismos de ação: regular o sistema imunológico, controlar de infecções e melhorar a oxigenação do organismo. O que tocaria na ação de diversas doenças.
Nessas clínicas, normalmente, pede-se uma consulta inicial — o preço pode chegar a R$ 600 — para que seja avaliada como será a terapia e seu tempo de duração. Em uma clínica de Belo Horizonte, por exemplo, um dos especialistas na técnica tinha agenda cheia até maio do ano que vem. Médicos ouvidos pelo GLOBO, porém, desestimulam a prática e dizem não reconhecer os benefícios de adotar uma terapia do tipo.
'Picaretagem'
Defensores da prática nas redes sociais e vídeos do YouTube, por exemplo, dizem que o uso de ozonioterapia por autistas promoveria uma melhora global na oxigenação cerebral, traria benefícios ao sistema circulatório, entre outras áreas. Outras postagens sugerem que o oxigênio ajudaria no atraso da fala, um problema comum às pessoas que têm transtornos classificados como parte do espectro autista. Especialistas no manejo do transtorno, por outro lado, garantem que não há estudos específicos que ratifiquem esse uso — e criticam quem submete crianças a esse tipo de terapia.
— É uma picaretagem. O transtorno do espectro autista não tem tratamento. O que há são medicamentos que amenizam os sintomas, e se criança não tem sintomas fazemos a terapia comportamental e fonoaudiológicas — diz Carlos Takeuchi, neurologista do Instituto Pensi, ligado ao Hospital Sabará.
O uso para o câncer também é absolutamente desaconselhado. O oncologista Fernando Maluf, à frente do Instituto Vencer o Câncer, faz coro aos que dizem que não há qualquer evidência de que o uso do ozônio em pacientes no tratamento da doença traga algum benefício. Maluf diz que caso existisse alguma indicação de que essa terapia realmente funciona, décadas de estudos científicos já teriam comprovado sua eficácia.
Para os médicos, a popularidade desse tipo de método nas redes sociais, mesmo sem reconhecimento da classe científica, está ligado à uma saída fácil para problemas crônicos e que causam grande apreensão dos pacientes.
— Não há comprovação científica, não há nenhum trabalho sério, relevante, sobre ozonioterapia, que mostre qualquer alteração metabólica que pudesse ter benefício para o paciente com diabete mellitus. Não há justificativa para esse uso. Os pacientes buscam alguma coisa que os livre de tratamento crônico, que é a mudança do estilo de vida. É algo difícil, mas não há outra saída — afirma Daniel Kendler, endocrinologista e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes, no Rio.
Procurado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) não quis comentar o uso do gás em pacientes de diversas doenças, mas mantém posicionamento de não reconhecer a prática e apenas autorizá-la no âmbito experimental.
Por meio de liberação de seus conselhos, porém, outros especialistas podem utilizar a técnica: caso dos biomédicos, dentistas e enfermeiros, por exemplo. O que, porém, é embarreirado pela falta de liberação desses equipamentos além da odontologia e estética.
Projeto de lei
Em paralelo à discussão médica, há atualmente em andamento um Projeto de Lei cuja função é regulamentar a prescrição da terapia com o chamado ozônio medicinal no país. Aprovado na Câmara dos Deputados, o PL ainda precisa avançar no Senado. A decisão, contudo, diz que o uso está condicionado à indicação médica. O que pode impor pressão ao conselho de medicina para rever seu posicionamento, dizem os apoiadores da prática.
— Já faz alguns séculos, que a medicina como prática clínica oficial se afastou da feitiçaria. A feitiçaria é baseada em intuição, revelação, mas a prática médica não pode ser desenvolvida dessa forma. A mesma coisa aconteceu com a fosfoetanolamina, para tratar todos os cânceres, foi aprovado por lei (depois considerada inconstitucional pelo STF), mas isso não obriga os médicos a descumprirem seu juramento — diz o consultor da Associação Médica Brasileira (AMB), Helio Bacha.
Diante da profusão de promessas de que a ozonioterapia seria viável como tratamento auxiliar para dezenas de doenças, a própria Associação Brasileira de Ozonioterapia (Aboz) moderou o tom. O atual presidente diz orientar o uso da terapia somente como forma de amenizar dores crônicas. O que causou desconforto dentro da associação, ele diz.
— Existe aqui no Brasil muita propaganda enganosa, gente vendendo em rede social. O que nós indicamos é para caso de dor, crônica e inflamatória — diz Antônio Teixeira, presidente da Aboz.
Não se trata de um caso isolado, notícias de curas milagrosas para doenças diversas tomam conta da internet e não são inofensivas, explica a divulgadora científica Gabriela Bailas, que costuma utilizar suas redes sociais para desmentir as chamadas "fake news" de saúde.
— A pessoa tem que pensar que se estão citando estudos, é preciso buscá-los, ver onde eles foram feitos, quem os realizou. É preciso observar se quem passou a informação (da terapia) vende esse produto, se tem um curso sobre isso, um workshop — afirma a especialista, em referência a um conflito de interesse dos defensores da técnica nas redes sociais.
Fonte: O Globo
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