Eles prometem experiências recreativas de forma tão simples quanto colocar o fone de ouvido e apertar o play. São aplicativos, conhecidos principalmente pela versão mais popular, o I-Doser, que utilizam ondas sonoras para supostamente provocar efeitos semelhantes aos de substâncias entorpecentes. Apelidadas de “drogas digitais” ou “drogas sonoras”, as plataformas têm se proliferado no Brasil, e chamado a atenção de especialistas.
O alerta não é à toa, segundo um levantamento global com 22 países, publicado na revista científica Drug and Alcohol Review, cerca de 5% da população mundial já buscou aplicativos do tipo. Entre as cinco nações com maiores adeptos, está o Brasil, cuja média sobe para aproximadamente 11,5%, atrás apenas de México e Estados Unidos.
Vídeos sobre o Binaural Beats – a técnica de frequências sonoras que é utilizada pelas plataformas – têm repercutido nas redes sociais e preocupado mães e pais, que temem por possíveis riscos à saúde dos filhos. Ao mesmo tempo, publicações que divulgam o método crescem em mídias como TikTok, em que mais de 70 milhões de visualizações já foram contabilizadas em vídeos do tipo.
Especialistas, porém, explicam que a promessa das chamadas “drogas digitais” é algo muito mais próximo à ficção do que da realidade, e que não há hoje a possibilidade de frequências sonoras produzirem efeitos de substâncias ilícitas – motivo pelo qual os apps não são considerados ilegais. Ainda assim, destacam que existem riscos associados à disseminação da prática, como danos que podem acarretar a perda auditiva e até mesmo dependência psicológica.
É o que relata a psicóloga Valdelena Monteiro, de 50 anos, que percebeu uma movimentação diferente em seu consultório no início deste ano. “Muitas mães e pais trazendo seus filhos, se queixando de que eles estariam viciados em uma plataforma de música”, conta. As indagações preocuparam a profissional que, até então, nunca havia lidado com algo semelhante.
— Essas mães me procuraram afirmando que seus filhos estariam viciados. A pergunta era, no quê? Foi a primeira vez que ouvi falar do I-Doser. Me debrucei em pesquisas para conseguir entender do que se tratava e foi aí que eu decidi experimentar a plataforma para ver se os efeitos eram, de fato, como as mães me descreviam — diz a psicóloga, que durante uma semana usou o dispositivo por 15 minutos a cada dia.
— Assisti aos vídeos deitada de bruços, com volume no máximo e com as luzes apagadas. Exatamente como as mães me disseram que seus filhos ficavam em casa. Senti uma leve enxaqueca e um pouco de tontura. Não detectei nenhum efeito alucinógeno, mas é importante alertar os jovens que este hábito feito em excesso pode, sim, ser prejudicial — complementa. O que é o I-Doser e o Binaural Beats? O I-Doser é um aplicativo que oferece “doses digitais” que, segundo seu site, proporcionam uma “experiência recreativa”, uma “melhora na meditação”, um “relaxamento”, entre muitos outros objetivos. São centenas de opções diferentes de arquivos para os seus milhões de usuários, acompanhados muitas vezes de estímulos visuais.
O acesso à plataforma não é gratuito – na loja de aplicativos do iPhone, a AppStore, o programa custa R$ 27,90, enquanto na PlayStore, nos celulares com sistema Android, o valor é de R$ 15,90. Uma vez dentro do programa, há ainda a opção de comprar áudios extras.
O I-Doser é a plataforma mais famosa, mas não é a única a oferecer as experiências do tipo. Há ainda apps gratuitos, vídeos no YouTube e opções no Spotify que dizem reproduzir o efeito. Todos eles têm algo em comum: utilizam a técnica chamada de Binaural Beats para supostamente atingir o resultado.
— Na física, quando você tem dois sons emitidos em frequências muito próximas, com diferenças menores que 40 Hz, a pessoa que está ouvindo começa a ouvir uma terceira frequência, que não é nenhuma das duas. Na natureza, isso é chamado de batimentos monaurais, algo comum utilizado na música por exemplo — explica o físico Jorge Quillfeldt, professor do departamento de biofísica e do programa de pós-graduação em neurociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— Mas, quando isso ocorre com os fones de ouvido, em que cada ouvido escuta apenas uma frequência, e é no sistema auditivo em que elas formam essa terceira, são os chamados de batimentos binaurais (Binaural Beats). É uma ilusão auditiva, porque aquela terceira onda não existe de verdade — complementa.
A técnica na verdade é datada do século XIX, quando foi descrita pela primeira vez por um físico alemão. De acordo com os criadores dos novos aplicativos, essa terceira onda seria capaz de alterar o estado de consciência da pessoa. Relatos em redes sustentam ainda que isso simularia efeitos de drogas psicotrópicas, o que para Quillfeldt é “uma ligação completamente equivocada”.
— As drogas de verdade atuam quimicamente, ligando-se em receptores de determinados neurônios do nosso cérebro. Mas não existe nenhuma demonstração científica de que ondas cerebrais induzidas por frequências sonoras poderiam reproduzir aquelas moléculas do nada para controlar esses receptores e produzir o mesmo efeito. Existe essa alegação de que as ondas sonoras poderiam induzir uma oscilação exata no cérebro, mas isso não consegue proporcionar um efeito de “onda” na pessoa — pontua o professor de biofísica.
Em um estudo publicado na revista científica eNeuro, pesquisadores canadenses e franceses compararam a exposição aos batimentos binaurais com aos monaurais. Na conclusão, relataram que “nenhuma modulação de humor relacionada à nossa manipulação experimental” foi detectada pelo Binaural Beats. Outros trabalhos, pequenos, indicaram um leve benefício para promover uma sensação de relaxamento, o que não necessariamente é associado às frequências.
— Nós sabemos que sons podem emular nossas emoções. Uma boa ópera pode nos fazer chorar, um rock gerar euforia. Mas não existe uma literatura robusta embasando que eles poderiam ser usados para uma terapia, essas experiências têm sido muito anedóticas e variáveis de pessoa para pessoa. Os principais fornecedores comerciais desses sons não fazem declarações do tipo científicas, simplesmente oferecem — explica Diego Laplagne, professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Ele afirma que existem pesquisas que estudam a relação entre ondas cerebrais e o estado mental das pessoas, mas não se sabe ainda até que ponto essa relação poderia ser causal. Além disso, diz que seria necessário que a ativação dos neurônios do sistema auditivo, que ocorre com o som, conseguisse atingir outras áreas cerebrais, algo que não foi alcançado ainda. Médicos destacam que há riscos Embora não proporcione de fato os efeitos de uma droga, o I-Doser e seus semelhantes não são isentos de riscos. Não à toa, recentemente a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) emitiu um alerta ao perceber um aumento de pais e mães relatando preocupação com os aplicativos. Uma das possíveis consequências é justamente a dependência psicológica.
Maria Clara das Neves foi uma das que procurou ajuda médica quando percebeu que a filha de 15 anos não interagia mais com ela em casa. A menina passava a maior parte do tempo com o celular e o fone de ouvido utilizando o I-Doser. A vendedora revelou ao O GLOBO que a adolescente teve contato com o aplicativo através de uma corrente criada pelos amigos da escola.
— Tudo começou há uns 8 meses. Minha filha não conseguia mais largar o celular e sempre que eu olhava, ela estava usando essa plataforma no quarto ou em outros cantos da casa. Ela começou a ter um comportamento agressivo toda vez que eu tentava tirar o celular dela. Percebi que ela estava começando a ficar dependente. Não acho que essa plataforma seja uma droga, mas com certeza ficar mexendo nisso o tempo todo não faz bem. Mas o psicólogo tem ajudado bastante, ela voltou a praticar esportes e tem conversado mais comigo, algo que não fazia antes — desabafa Maria, moradora da capital fluminense.
O documento da SBP também destaca que a estimulação exagerada e contínua de ruídos pode impactar na neuroplasticidade (capacidade do cérebro de crescer) durante uma época em que o órgão ainda está em formação, um processo que apenas termina aos 25 anos.
Além disso, a sociedade afirma que os sons podem levar a danos auditivos, o que, para o professor de pediatria da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Eduardo Jorge Custódio, presidente do grupo de trabalho de mídias digitais da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (Soperj), é o principal risco do Binaural Beats.
— Esses apps forçam muito em determinadas frequências sonoras e podem causar danos em células da cóclea (parte do ouvido interno). Nós temos células ciliares e cada uma delas balança de acordo com determinada onda sonora. Mas com o tempo, se ela é muito utilizada, ela acaba perdendo a função. Então, especialmente em frequências altas e por longo tempo, você pode ter perdas auditivas em determinadas faixas sonoras — explica.
O alerta é importante dentro do cenário em que mais de um bilhão de jovens entre 12 e 34 anos no mundo estão em risco de perda auditiva devido ao uso inadequado de fones de ouvido e por frequentarem locais com música em volume além do orientado, segundo uma ampla revisão de estudos sobre o tema publicada na revista científica BMJ Global Health.
Custódio também ressalta que as batidas podem atrapalhar o sono dos adolescentes. A boa notícia é que os pais não precisam se preocupar em relação à possibilidade de o i-Doser atuar como uma porta de entrada para drogas de verdade, diz o especialista.
— Nós nos debruçamos sobre, mas não tem um trabalho sobre dizendo que isso seria porta de entrada para drogas. Não achamos que o i-Doser deve ser utilizado, mas de fato não favorece o uso de substâncias ilícitas, pode ser uma porta de entrada apenas para surdez — explica.
Fonte: O Globo
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