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Estamos preparados para a pandemia de saúde mental após o coronavírus?



Muito antes de o novo coronavírus existir, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimava que, até 2020, a depressão se tornaria a doença mais incapacitante do mundo. Se a situação já era preocupante, a ocorrência de uma pandemia — que dissemina medo, causa instabilidade e obriga as pessoas a experimentarem o isolamento de forma compulsória — aproximou o mundo de uma crise de saúde mental ainda mais caótica.


Especialistas são unânimes ao afirmar que o Brasil, assim como boa parte do mundo, não está preparado para lidar com os efeitos da pandemia no que se refere à saúde mental da população. O país sequer tem força de trabalho especializada para isso.

Nem mesmo o Distrito Federal, com o maior número de médicos por habitante no país, segundo pesquisa da Universidade de São Paulo e do Conselho Federal de Medicina, está livre de enfrentar a crise. De acordo com dados da Demografia Médica 2017, há apenas 348 psiquiatras para atender os mais de 3 milhões de habitantes do DF. A maior parte deles, no entanto, está disponível apenas para quem pode pagar.


Número de profissionais é insuficiente

O médico psiquiatra Eduardo Tancredi, membro da Aliança para Saúde Populacional (ASAP), explica que o Brasil está entre os três países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com pior índice de médicos psiquiatras em relação à população. São cinco para cada 100 mil habitantes. Para efeito de comparação, na Suíça são 51 médicos para cada 100 mil.


A falta de profissionais afeta toda a estrutura de saúde, mas não é difícil imaginar que o sistema público é mais atingido.


“Os recursos de saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS) são voltados para as doenças mais graves, como a esquizofrenia. De fato, é um tratamento custoso, mas é uma patologia que afeta parte pequena da população. A depressão e a ansiedade podem parecer menos preocupantes, mas certamente são o nosso maior problema”, avalia Tancredi.


O profissional esclarece que um evento traumático massivo − que pode ser uma pandemia, mas também atentados e grandes catástrofes naturais − costuma provocar trauma agudo. Se ignorado, esse trauma pode desencadear uma crise em todo o sistema de saúde.


“Se não estamos preparados para dar assistência básica, orientação psicológica, teremos casos cada vez mais graves, além de aumento expressivo no número de suicídios. Também é importante mencionar que a depressão é um processo inflamatório, ela diretamente relacionada a outros problemas de saúde”, explica o médico.

Uma pessoa com depressão raramente tem só depressão. Ela chega ao consultório com pressão alta, diabetes, obesidade. É uma doença invisível, mas que é processada de forma física, por meio de alterações químicas na mente. Em 10 anos, podemos ter um cenário desastroso. EDUARDO TANCREDI, MÉDICO PSIQUIATRA E MEMBRO DO COMITÊ TÉCNICO DA ALIANÇA PARA SAÚDE POPULACIONAL (ASAP)
População precisa, mas desacredita

A noção de que o sistema de saúde público não é capaz de atender doenças aparentemente invisíveis já está arraigado no consciente popular.


Desde o início da pandemia, a estudante de direito Andressa Santos do Nascimento, 25 anos, tem visto seu comportamento mudar cada vez que é exposta a notícias sobre o coronavírus. “Lembro-me de perder o ar, pensar em várias coisas que poderiam acontecer com as pessoas que amo e chorar muito”, relata.

A crise de pânico narrada pela brasiliense não foi reportada para um psicólogo ou psiquiatra porque ela estava sem plano de saúde. “Já cheguei a fazer acompanhamento psicológico por um ano, mas parei por causa de problemas no plano. Não procurei o sistema de saúde porque sei que, na área de saúde mental, ele é bastante escasso.” ANDRESSA NASCIMENTO, ESTUDANTE DE DIREITO E FUNCIONÁRIA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

A universitária conta que sua única experiência nesse sentido ocorreu por meio de um tio que tinha esquizofrenia. “Me lembro de ele ter encontrado apoio no CAPs. Meus tios nem sabiam que isso era possível. Apesar de ser supersimples ser atendido nos centros, nem todo mundo tem conhecimento”, reclama.


Andressa, no entanto, não acredita que a metodologia do CAPs seja adequada para lidar com seu problema. “Penso que é mais simples encontrar nas universidades aqueles profissionais em formação, que, às vezes, cobram só um valor simbólico”, assinala.


Solução é capacitar médicos da saúde primária

Segundo Eduardo Tancredi, a modalidade de atendimento mencionada por Andressa ajuda, mas não é capaz de resolver o problema. Para o especialista, a solução mais viável é criar mecanismos para capacitar médicos que atuam em outras especialidades.


“Não temos como formar profissionais o suficiente para lidar com o problema, porque ele é urgente. Porém, não dá pra falar de saúde populacional sem colocar a saúde mental como prioridade, sem trazê-la para o atendimento primário de saúde. Será preciso fornecer ferramentas para o médico generalista, de família e outras especialidades”, defende.


Um exemplo de como isso poderia funcionar aconteceu de forma espontânea na última semana, em uma unidade básica de saúde de Jaguaré, em São Paulo. Por meio de um relato no Twitter, o médico Guilherme Gama contou que recebeu em seu consultório uma mulher de 47 anos, empregada doméstica, que se queixava de pressão alta e formigamento nos braços.


Ao falar sobre o medo de aquilo “ser algo ruim”, a mulher começou a chorar. Pontuou sobre as condições financeiras da família, a falta de direitos trabalhistas e a fome que sentia durante a jornada de mais de 12h.


“Meu ponto com esse relato é compartilhar com meus colegas de saúde que uma pressão alterada, uma parestesia, uma angústia, como essa paciente se queixava, podem ter origem em lugares muito obscuros da vivência humana”, escreveu. O texto do jovem médico viralizou nas redes sociais.


Em entrevista ao Metrópoles, Guilherme disse acreditar que seu dever como profissional também é dar meios para que as pessoas se fortaleçam.


“Ofertar o Serviço Social da sua unidade, acionar os centros de referência em assistência social, apontar atendimento de outros profissionais, referenciar para especialidades se for necessário, conhecer a sua rede, os lados bons e os gargalos”, elencou.


Sem entrar no mérito de como os próprios profissionais de saúde também serão afetados por quadros de estresse e depressão no pós-pandemia, o médico acredita que, caso exista solução para os desdobramentos da pandemia para a saúde mental, ela é complexa, multifatorial e de longo prazo.

“Mais do que contratar mais profissionais ou aumentar a distribuição de medicações antidepressivas, por exemplo, vamos precisar de uma política pública de saúde mental que inclua Atenção Básica forte e resolutiva. Médicos como eu, do postinho, podem e devem manejar questões de saúde mental juntamente ao apoio de uma equipe multiprofissional”, pontua. GUILHERME GANA, MÉDICO GENERALISTA DE UMA UBS DE SÃO PAULO. ELE VIRALIZOU O TWITTER COM RELATO SOBRE UMA CONSULTA

Essa forma de atender, segundo Guilherme, se chama Método Clínico Centrado na Pessoa. “Tentamos entender a pessoa, e não a doença, como os métodos mais tradicionais”, conclui.


No Distrito Federal

Por meio de nota, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal informou que houve aumento significativo na busca por atendimento, tanto nos Centros de Atenção Psicossocial quanto nos ambulatórios e na emergência psiquiátrica no Hospital São Vicente de Paulo.


“Os profissionais da saúde observaram relatos de muitos casos novos e recaídas também, principalmente quando o contexto é álcool e drogas. Ainda não há quantitativo de atendimentos atualizado pela área”, diz o comunicado.


Sem explicar como se dá cada modalidade de atendimento, a pasta informou que priorizou o “fortalecimento das ações em relação à saúde mental após o início da pandemia” e falou em casos críticos.

“Todos os dispositivos estão funcionando, como os Centros de Atenção Psicossocial, emergências psiquiátricas, os ambulatórios. Os profissionais da saúde também realizam a busca ativa, que é a modalidade em que o paciente é acompanhado a distância para garantir a adesão ao tratamento sem necessariamente precisar ir ao consultório. Todas as medidas estão sendo observadas para evitar a aglomeração e, sempre que possível, realizar a intervenção de crise”. NOTA DA SECRETARIA DE SAÚDE DO DISTRITO FEDERAL

A secretaria também foi questionada sobre a existência de programas em que o usuário possa obter atendimento psicológico gratuito e contínuo, mas não respondeu à reportagem até o momento.


Fonte: Metrópoles

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