Marta lutava contra o cansaço no dia a dia. Sem foco para enfrentar atividades do trabalho, numa grande empresa em São Paulo, e ganhando peso, ela achou uma boa ideia quando recomendaram um endocrinologista famoso que poderia ajudá-la.
"A consulta custou R$1.200 e durou apenas 5 minutos. Eu e meu marido saímos com a mesma receita: Ozempic para emagrecer e Venvanse para ter foco — uma combinação que ele aparentemente prescreve para todos."
Ela conta que tentou argumentar se aquele caminho, medicamentoso, seria o único possível para resolver suas queixas. Mas acabou seguindo a receita.
"A experiência com o Venvanse foi a mais impactante. De amor e ódio, eu diria. No primeiro dia, senti um hiperfoco e bem-estar incríveis, fui mais produtiva e motivada, mas sabia que isso era efeito do remédio."
Os comprimidos, prescritos para TDAH e compulsão alimentar, aumentam a liberação dos neurotransmissores dopamina e noradrenalina nas sinapses, que são as conexões entre os neurônios.
Essas substâncias, deficientes em quem tem os quadros citados, são cruciais para a regulação do humor, atenção e comportamento impulsivo.
"Mas em organismos onde os níveis já são adequados, o aumento pode causar efeitos indesejáveis, como insônia, ansiedade, irritabilidade, impaciência e até agressividade. Casos mais graves incluem convulsões e problemas cardiovasculares", diz Marcos Gebara, psiquiatra e professor convidado do curso de Pós-Graduação de Psiquiatria da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
"Em pessoas predispostas a problemas psíquicos, esses efeitos podem piorar significativamente."
Gebara e outros médicos consultados pela reportagem afirmam que o uso dos comprimidos por pessoas sem diagnósticos que o justifique tem sido cada vez mais comum, e que muitos usuários não sabem ou ignoram que o Venvanse contém anfetamina, uma substância que pode causar dependência.
"O uso requer um acompanhamento médico, sempre. A dependência é um risco, especialmente se a pessoa aumentar as doses sem indicação."
Com medo justamente de que pudesse ficar dependente da ‘sensação de superpoder’, Marta expressou suas preocupações, mas o médico insistiu que o uso era seguro.
"Foi aí que busquei outro profissional, que me ajudou a parar com o remédio, entendendo minha preocupação com os efeitos a longo prazo. Foi difícil aceitar a vida sem Venvanse. Me senti deprimida por algumas semanas."
Amanda também teve acesso ao remédio por prescrição médica e sem ter nenhum dos diagnósticos para os quais a droga é indicada.
Foi ela que, se sentindo esgotada e incapaz de dar conta dos dois empregos que levava, pediu a uma nutróloga que receitasse Venvanse. Ela conta que a médica pediu exames, e com os resultados em dia, forneceu a receita.
"Eu usava os comprimidos esporadicamente, apenas nos dias em que precisava de um desempenho melhor no trabalho. Percebi que me dava um foco e energia extras, mas no dia seguinte estava extremamente cansada e precisava dormir mais para compensar."
Depois que as últimas caixas acabaram, Amanda cogitou pular a fase da consulta médica e comprar os comprimidos direto no mercado ilegal.
"Tinha colegas que me indicaram os caminhos: por grupos nas redes sociais e até com esquemas diretamente com farmácias de rua", conta.
Mas por fim, assim como Marta, ela também relata ter parado de usar o remédio por medo de uma dependência da qual não conseguisse mais voltar atrás.
'Doping corporativo'
Ambas as mulheres têm mais de 30 anos e trabalham em grandes empresas – do ramo de tecnologia e comércio – em São Paulo. Elas relataram que o uso de Venvanse ‘off label’ – com e sem receita médica – é algo comum no ambiente corporativo.
"É mais banalizado do que eu imaginava, e o uso desses remédios cria uma competição desleal, já que levam a um desempenho melhor."
"Trabalho em uma empresa com cultura americana, onde a competição é intensa, e sei que sou comparada a colegas que usam esses medicamentos. Isso aumenta a pressão para ter alta performance, um dos pontos que me levou a tomar", diz Marta.
Os psiquiatras ouvidos pela BBC News Brasil reiteram que há uma ‘onda’ de busca por maior produtividade no trabalho, e o medicamento tem sido usado sem rigor.
Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra e professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp), explica que, embora quem tome sem ter TDAH ou compulsão alimentar possa ter uma sensação de melhora na produtividade, o efeito é ilusório.
"A sensação de estar mais alerta e produtiva é subjetiva – a pessoa não fica mais inteligente nem necessariamente produz mais. Testes cognitivos mostram que o desempenho de uma pessoa sem transtorno de atenção não é superior com o uso do Venvanse."
Ana, também empregada em uma grande empresa de tecnologia, acabou desistindo da ideia, mas conta que considerou tomar Venvanse ao observar o desempenho dos colegas.
"Eu digo que era um doping corporativo. Eu via a diferença nas pessoas que conhecia; quem usava realmente parecia mais focado no trabalho. Não falavam abertamente porque não era muito bem visto, mas depois de um tempo a conversa fluía, e eu percebi que eram muitas pessoas usando", lembra.
Para o psiquiatra Dartiu Xavier de Silveira, esse uso de Venvanse por quem não precisa realmente do remédio reflete a procura desenfreada por performance na sociedade atual.
"Há uma pressão constante para se destacar e ser bem-sucedido, e pressão, muitas vezes, leva as pessoas a colocar a produtividade à frente da saúde, o que considero um reflexo de um ideal de sucesso muito doentio", avalia.
E as queixas de quem faz o uso indiscriminado podem não ser resolvidas com o remédio para TDAH ou até pioradas por ele.
"Muitos dos pacientes que usam dizem usar porque estão desanimados e querem melhorar a performance", complementa Silvia Brasiliano, psicóloga e coordenadora do Programa da Mulher Dependente Química (PROMUD) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
"Eu sempre os encaminho a um psiquiatra para avaliar se realmente precisam do medicamento. Venvanse não é para qualquer um, não é um remédio que melhora a performance de qualquer pessoa sem efeitos colaterais. Pode causar ansiedade e dificuldade para dormir, por exemplo."
Brasiliano afirma que o uso tem se tornado cada vez mais comum. "Busco explicar que essa droga pode causar dependência e deve ser usada especificamente para transtorno de atenção. Se alguém está desmotivado, pode ser um quadro de depressão, burnout... Para cada situação, é necessário um tratamento diferente."
A psicóloga afirma, ainda, que há pouca informação na literatura científica sobre o abuso de Venvanse. "Há alguns alertas e estudos americanos, mas faltam dados sobre o contexto brasileiro."
Outro uso indevido que tem se tornado cada vez mais comum, de acordo com os médicos, é o recreativo. Por ser um estimulante, há quem compre o Venvanse para usar em festas.
"Venvanse com álcool ou outras drogas estimulantes, como cocaína ou MDMA, é uma combinação muito perigosa. Os riscos incluem problemas cardíacos, pressão alta, derrame e quadros psicóticos", alerta Silveira, que é um dos fundadores do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD).
A reportagem da BBC News Brasil encontrou grupos no Telegram onde caixas do remédio são vendidas por mais do que o dobro do preço legal e onde até prescrições médicas falsas são oferecidas.
Como funciona a venda ilegal de Venvanse
Em farmácias, com uma receita legal, o Venvanse já tem um preço considerado alto em comparação a outros remédios psiquiátricos.
De acordo com as regras da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), que limita o preço máximo de medicações no Brasil, uma caixa de 28 comprimidos de 30mg de Venvanse deve custar, na maioria dos estados brasileiros, no máximo R$ 365,38.
Para as versões de 50mg e 70mg, o valor pode chegar a R$443,07.
Em um grupo de Telegram onde se vendem, ilegalmente, caixas de Venvanse e outras substâncias controladas, como diferentes remédios psiquiátricos e até drogas anabolizantes, o remédio chega a custar R$850 na dosagem mais alta.
A BBC News Brasil perguntou ao Telegram se a plataforma estava ciente e se tomariam medidas para tentar evitar o comércio ilegal, mas não recebeu retorno até o momento da publicação desta reportagem.
Os atendentes do canal também oferecem ajuda para falsificar receitas amarelas, o tipo exigido em farmácias para o Venvanse.
A falsificação de receita médica é crime previsto no art. 298 do Código Penal com pena de um a cinco anos e multa. Nesses casos, o risco todo fica a cargo de quem vai tentar usar o documento falso na farmácia.
Para ter acesso ao receituário amarelo, os profissionais – sejam eles médicos, veterinários ou cirurgiões-dentistas – devem se cadastrar previamente na Autoridade Sanitária local.
Após o cadastro, o órgão de vigilância fornece ao prescritor um talonário com uma quantidade específica e numeração dos receituários. Estes profissionais precisam estar devidamente inscritos nos seus respectivos Conselhos profissionais.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) afirmou à reportagem que há 15 dossiês investigativos relacionados ao comércio ilegal, em sites sem a devida autorização e sem receita médica, do Venvanse.
A agência reitera que todos os seus canais de atendimento podem ser usados para denúncias de venda ilegal.
A única responsável pela produção de Venvanse atualmente, a farmacêutica Takeda, afirmou à reportagem que "firmemente rechaça qualquer iniciativa que estimule o uso de medicamentos sem prescrição médica. Por isso, os medicamentos da Takeda são vendidos exclusivamente nos canais devidamente autorizados."
Venvanse para quem precisa de Venvanse
O Venvanse passou a ser comercializado no Brasil em 2010, a princípio recomendado apenas para quem tem diagnóstico de TDAH, um dos distúrbios mentais mais comuns, de acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde).
O transtorno afeta de 5 a 8% das crianças, principalmente meninos, e frequentemente persiste na vida adulta.
As causas exatas ainda não são totalmente compreendidas, mas alguns fatores que podem desempenhar um papel incluem: genética, já que o TDAH pode ser hereditário; experiências traumáticas significativas na infância; nascimento prematuro; lesão cerebral; além de a mãe fumar, consumir álcool ou sofrer de estresse extremo durante a gravidez, ou ser exposta ao chumbo durante a gestação.
O diagnóstico é principalmente clínico.
"É baseado em sintomas principalmente do período da infância, atentando para déficit de atenção, hiperatividade e impulsividade e considerando o contexto familiar de cada um", afirma o psiquiatra Luiz Sperry, de São Paulo.
Além do Venvanse, a Ritalina é outro remédio bastante comum para o transtorno.
"Ambos aumentam a dopamina na região frontal do cérebro. Algumas pessoas se adaptam melhor a um do que a outro. A principal diferença é que o tempo de duração do efeito da ritalina é curto, cerca de 4 horas, enquanto o Venvanse dura de 8 a 12 horas", afirma Dartiu Xavier da Silveira.
Dez anos depois, em 2021, o Venvanse também passou a ser indicado para compulsão alimentar, um quadro caracterizado por episódios de ingestão excessiva de alimentos em pouco tempo, acompanhados por sensação de perda de controle e seguidos por sentimentos de culpa e vergonha.
"Para esses casos, o remédio também pode ajudar porque é a anfetamina presente no comprimido reduz o apetite. Dá a sensação de saciedade, como se a pessoa tivesse comido há pouco tempo", diz Sperry.
A droga não substitui, no entanto, outros tipos de tratamentos que podem ser recomendados para o quadro, como acompanhamento com psicólogo e psiquiatra.
Quebra de patente
Atualmente, a farmacêutica Takeda detém a patente do Venvanse, o que impede a produção de versões genéricas (com a mesma formulação, mas sem a marca) por outras empresas.
A quebra da patente estava prevista para 2024, mas a Takeda pediu uma extensão, alegando que a Anvisa demorou mais do que o previsto para conceder a patente no passado. A decisão está em processo judicial.
Com o vencimento da patente, espera-se maior disponibilidade do tratamento para quem precisa - mas, com o preço mais baixo, também é possível que o uso indiscriminado aumente, segundo especialistas.
Fonte: G1
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