Como conversar com as crianças sobre violência e medo
- Portal Saúde Agora

- 31 de out.
- 4 min de leitura

“Mãe, morreu muita gente hoje?”. A pergunta foi feita pela minha filha, de 9 anos, na tarde de terça-feira, quando ainda nem sabíamos a extensão do que havia acontecido no Rio de Janeiro naquele dia. Fiquei em silêncio por alguns segundos, tentando encontrar uma resposta que fosse honesta, mas não assustadora.
Como a gente deve falar sobre violência com as crianças? Essa dúvida me persegue e imagino que persiga muitos outros adultos também. Logo pensei nas crianças e adolescentes que vivem em comunidades vulneráveis, onde a violência invade a rotina recorrentemente. Como esses pais, mães e cuidadores lidam com isso?
Conto tudo isso porque na próxima quarta-feira, 5 de novembro, estreia a newsletter “Meus filhos, minhas regras?”, que eu assino. A proposta é simples: receber e responder dúvidas reais de pais, mães e cuidadores de crianças e adolescentes, ouvindo profissionais que possam ajudar a pensar em cada uma delas.
“Deixo meu filho de 9 anos jogar Roblox?”; “O que fazer se o açúcar e os games são liberados na casa do melhor amigo, mas aqui não?”; “Vi meu filho de 15 anos conversando sobre sentimentos com o ChatGPT. Tento impedir?”. Essas foram algumas perguntas que ouvi de amigos enquanto preparava o projeto.
Atravessada pela minha própria dúvida sobre como lidar com a violência, começo hoje por ela: fui atrás de especialistas que me ajudassem a entender como falar desse assunto com crianças de diferentes idades e realidades. Leia abaixo o que disseram as psicólogas entrevistadas.
Ao final desta reportagem, veja como enviar sua pergunta sobre crianças e adolescentes para a newsletter.
Erika Pallottino, psicóloga
Especialista em luto e perdas e sócia-fundadora do Instituto Entrelaços
"Com cerca de 7 anos, a criança já começa a desenvolver o que chamamos de pensamento abstrato. Nessa fase, podemos abordar temas difíceis, como a violência, mas sem enfatizá-lo de modo excessivo. O importante é observar a reação da criança, perceber até onde ela quer ir na conversa e ajustar o tom. Evitar palavras muito fortes e tentar contextualizar, explicando que o mundo tem desigualdades, injustiças e diferentes oportunidades. Falar sobre empatia, solidariedade e privilégios é essencial para que a criança compreenda que as pessoas vivem realidades distintas.
Costumo dizer que menos é mais. É melhor oferecer informações aos poucos, observando expressões e gestos da própria criança, do que despejar o que ela ainda não pode sustentar. Também é fundamental proteger as crianças da exposição excessiva à violência, nas redes sociais, nas conversas em casa ou na televisão. Elas precisam entender que há sofrimento no mundo, mas que também existe cuidado e a possibilidade de fazer o bem.
Atividades lúdicas, como desenhar ou escrever uma carta, ajudam a expressar sentimentos e a criar empatia com outras crianças que enfrentam dificuldades. Conversas assim não apenas acolhem o medo, mas também formam cidadãos mais conscientes e sensíveis, preparados para lidar com a vida real e com suas complexidades."
Andreza Viana, psicóloga
Coordenadora psicossocial do Instituto Apontar, organização da sociedade civil que identifica e atende crianças com altas habilidades de escolas municipais e de baixa renda no Rio de Janeiro
“Com crianças que crescem em territórios onde a violência é constante, o diálogo precisa ser diferente. Elas convivem com o medo todos os dias e reconhecem sons, gestos e ausências. Nesses casos, é importante unir o realismo com a esperança.
O adulto deve validar o medo, acolher a emoção e promover a sensação de segurança, mostrando que há pessoas e instituições trabalhando para protegê-las: vizinhos, escola, projetos sociais. Conversas sinceras, sem detalhes violentos, ajudam a criança a se sentir segura e a acreditar que pode construir uma história diferente, algo fundamental. É importante gerar um plano de longo prazo, um projeto de vida para essa criança.
Para quem precisa ter essa conversa com crianças que moram em comunidades expostas à violência, indico o livro "Quem sou eu? Kamyle", da Mariana Reade, sobre uma menina de 6 anos que vive nesse contexto. Ele fala de estratégias lúdicas para lidar com essa realidade".
Natalia Iencarelli, psicóloga
Psicóloga clínica que atende crianças e adolescentes
"É só aos 7 anos, depois de já ter sido alfabetizada, que a criança começa a ter noção de irreversibilidade, de limite e de fim real, de não poder voltar atrás. Nessa fase, ela começa a desenvolver a semente da capacidade de pensamento abstrato, que vai se completar em torno dos 26 anos.
Com a noção do que é irreversível, elas passam a entender que as coisas não voltam. A ideia de morte pode então ser introduzida para a criança. Podemos explicar que existe violência em um nível em que as pessoas podem morrer.
As crianças que vivem em comunidades expostas à violência sabem disso e são obrigadas a lidar com a morte de uma forma concreta como parte de sua realidade, infelizmente. É importante respeitar as etapas do desenvolvimento, mas nem sempre isso é possível. A maioria das crianças no Brasil não tem esse tempo respeitado, por conta de nosso contexto social. Elas perdem muitas coisas muito antes, às vezes, os próprios pais.
É importante explicar, de forma cuidadosa, observando sempre o que a criança é capaz de escutar. Quanto mais os pais são próximos, mais entendem e percebem o que dá para falar e o quanto podem ajustar essa conversa. E tudo depende também do interesse da criança sobre o assunto, ou da necessidade de apresentar esses temas morte e violência.
Se a criança ficar ansiosa demais, começar a apresentar quadro de pânico ou depressão, é o momento de procurar ajuda profissional, tomando cuidado para não patologizar, porque o desenvolvimento é um processo com oscilações, e a criança pode estar apresentando alterações transitórias."
Fonte: O Globo






Comentários