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Como a pandemia vai impulsionar o progresso tecnológico no setor da saúde



Nunca antes os sistemas de saúde mundiais estiveram em tanta evidência. Diante de uma pandemia de escala inédita desde a gripe espanhola de 1918, a infraestrutura médica se vê pressionada ao limite — e, com ela, os profissionais que atuam na área. Há décadas já havia indícios de que o setor não estava funcionando tão bem quanto poderia. Agora, a crise da covid-19 faz com que seja impossível ignorar os sinais.


Estamos diante de uma tempestade perfeita que reúne, de um lado, uma estrutura ultrapassada e sem recursos suficientes e, de outro, um aumento na demanda que expôs as deficiências do setor em escala global. Isso ocorre a despeito do crescimento considerável nos gastos mundiais com saúde desde a década de 80, de políticas públicas voltadas à área e de mudanças no estilo de vida da população.


Muitos motivos determinam a elevação desses custos. Em primeiro lugar, a expectativa de vida está subindo em todos os países. Até 2030 o número de pessoas com 60 anos de idade ou mais será superior ao número daquelas com menos de 10 anos — fato inédito na história da humanidade. Essa mudança demográfica de proporções planetárias aumenta a demanda sobre o sistema de saúde, que precisa atender às necessidades de uma população em processo de envelhecimento. Como exemplo, nos Estados Unidos os cidadãos com mais de 60 anos respondem por quase metade dos custos de saúde, embora representem apenas 22% dos pacientes.


Em segundo lugar, o estilo de vida moderno levou a um aumento na incidência de doenças crônicas, não transmissíveis ou associadas ao nosso modo de viver. O fenômeno está associado a dietas pobres, tabagismo, falta de atividade física, consumo excessivo de drogas e álcool. Se no passado tais questões eram consideradas restritas a países de alta renda, agora se espalham pelo mundo em alta velocidade, na esteira de fenômenos como urbanização e desenvolvimento econômico.


Esse tipo de problema substituiu as doenças infecciosas como principal causa mundial de mortes; segundo cálculos da Organização Mundial da Saúde (OMS), até 2030 as mortes globais causadas por doenças não transmissíveis vão atingir a marca de 52 milhões por ano — aumentando ainda mais a exigência sobre os sistemas de saúde já sobrecarregados.


Em terceiro lugar, a queda na taxa de fecundidade conduz a uma escassez de mão de obra por razões demográficas. O efeito disso é uma alteração na sustentabilidade do sistema de saúde, causada pelo desequilíbrio entre oferta e demanda por recursos nos países de alta ou média renda. A situação do mercado de trabalho é agravada pela onda de aposentadoria de profissionais de saúde da chamada geração baby boom (os nascidos após a Segunda Guerra Mundial e até meados dos anos 60) — o que impulsiona a concorrência global por trabalhadores qualificados para o setor. Ainda de acordo com a OMS, até 2030 haverá uma escassez mundial de cerca de 18 milhões de profissionais da área, sendo que esse déficit já atinge mais duramente os países de baixa e média renda.


Finalmente, nossas expectativas mudaram. Embora o serviço de saúde tenha tido melhoras acentuadas nos últimos 50 anos, o padrão de atendimento esperado pelos usuários aumentou ainda mais. À medida que a renda média da população sobe, o nível de expectativa dispara — e isso, obviamente, tem um custo.


O que fazer para melhorar a situação? Felizmente, existem muitas oportunidades e novidades positivas no horizonte. Uma das primeiras considerações a serem feitas é o modelo que sustenta o sistema. A maioria dos países usa o tradicional esquema que paga uma taxa ao profissional a cada atendimento, e reembolsa o usuário. Isso acaba por incentivar a realização de procedimentos, e não o diagnóstico correto. Para contornar a questão, muitos governos e seguradoras estão migrando para um modelo que considera os resultados, conhecido em inglês como value-based health care (VBHC, ou atendimento de saúde baseado em valor). Nessa abordagem, inspirada nas pesquisas do professor de Harvard Michael Porter, os provedores de serviços são recompensados de acordo com a saúde e o bem-estar dos pacientes atendidos, e não com os procedimentos efetuados. Uma pesquisa recente sobre a adoção do VBHC no mundo, realizada pela Intelligence Unit (unidade de inteligência) da revista britância The Economist, mostrou que o método ainda está em fase inicial, mas começa a ser implantado em países como a Suécia.


Em 2019, tanto a OCDE — a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, clube que reúne 37 países, em sua maioria ricos — quanto a Comissão Europeia produziram relatórios sobre VBHC. Já empresas de consultoria e do setor de saúde, como o Boston Consulting Group (BCG) e a Medtronic, têm destacado a eficácia desse novo modelo. Um estudo de caso conduzido pelo BCG demonstrou reduções de até 30% em internações desnecessárias e 74% em retornos à sala de cirurgia causados por complicações em pacientes com câncer de mama no grupo hospitalar holandês Santeon, que adotou a estratégia VBHC.


A telemedicina é outro exemplo de modelo capaz de aumentar significativamente a oferta e a eficiência do sistema global de saúde — e tem se mostrado valiosa no combate ao coronavírus. A Suíça explora esse tipo de atendimento desde 2003, e hoje muitas seguradoras oferecem a telemedicina como padrão.


Além disso, há testes com videomedicina e aparelhos inteligentes de autodiagnóstico, que podem ser usados em casa, pelos próprios pacientes. O governo chinês, por exemplo, promove a telemedicina desde 2014 — e o aplicativo Good Doctor, da seguradora Ping An, já é a maior plataforma mundial de saúde pela internet. Além de oferecer telemedicina, o app trabalha com farmácias e hospitais para funcionar como uma espécie de central de serviços médicos. Na Europa, a adoção de estratégias semelhantes é mais lenta, devido à reticência de pacientes e autoridades reguladoras. Mesmo assim, o uso da telemedicina está aumentando: em 2018, a Comissão Europeia calculou que o mercado global deveria crescer em € 37 bilhões até 2021 — ritmo que provavelmente será acelerado pela atual crise.


Isso nos traz ao tema mais amplo: a tecnologia. Com efeito, a chave para inúmeros avanços e oportunidades animadoras no setor de saúde, tanto para pacientes quanto para investidores, pode estar no desenvolvimento tecnológico. Os dados digitais têm o potencial de ajudar a construir sistemas sólidos, capazes de oferecer o atendimento baseado em valor. Faria sentido supor que países desenvolvidos como Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido estivessem na liderança desse movimento, mas na verdade as ideias mais revolucionárias para incorporar a tecnologia à medicina estão sendo adotadas por China, Índia e Rússia. O índice Philips Future Health de 2019 revelou que 94% dos profissionais de saúde chineses, 88% dos indianos e 81% dos russos usam algum tipo de tecnologia digital ou aplicativo em suas práticas — comparados à média mundial de 78% de uso. No Brasil, o índice é de 75%, ante 64% na Alemanha e apenas 48% na África do Sul (veja gráfico). Diante da pandemia de coronavírus, o setor batizado de medtech, a combinação entre medicina e tecnologia, que já vinha florescendo, avançou em alta velocidade.


Olhando para o futuro da saúde, esses avanços tecnológicos não são os únicos aspectos positivos à vista. A ciência da longevidade está se transformando numa indústria bilionária, e as descobertas resultantes significam viver não apenas mais, mas de forma mais saudável e plena. Centros mundiais de estudos, como o Campus Biotech em Genebra, a Agência Europeia de Medicina com sede em Amsterdã, e o Life Sciences Institute de Cingapura, estão turbinando as pesquisas na área e avaliando diversas maneiras de melhorar a saúde humana — desde o uso da inteligência artificial no auxílio a vítimas de AVCs até progressos no campo da genômica.


Do ponto de vista das relações interpessoais, pesquisas recentes mostram que a vida em comunidade faz bem ao organismo, e pode se desdobrar numa revolução na saúde social. Um relatório divulgado recentemente pela Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, afirma: “as relações sociais [...] não são apenas prazerosas: sua influência na saúde a longo prazo é tão determinante quanto boas noites de sono, uma dieta adequada e não fumar”. Governos, organizações sem fins lucrativos e diferentes comunidades têm se unido para incentivar a troca de experiências entre gerações. As iniciativas incluem instalar creches em lares de longa permanência para idosos ou reunir CEOs aposentados para oferecer mentoria a jovens empreendedores. Em face do isolamento imposto pela pandemia, os esforços para reconstruir o espírito comunitário (tão ausente em algumas áreas) aumentaram sensivelmente, e jogaram luz sobre as preocupações associadas à solidão. Quando pensamos no que está por vir para a indústria de saúde e serviços médicos, fica claro que nós — a comunidade como um todo — temos um papel preponderante a desempenhar, assumindo a responsabilidade pelo nosso próprio bem-estar.


Finalmente, mas igualmente importante, é preciso olhar para a profissão médica. Se existe um elo de força inegável na cadeia dos sistemas globais de saúde, esse elo está representado pelas pessoas que trabalham na área. O surto de coronavírus levou a profissão ao limite, e mesmo assim médicos, enfermeiros, funcionários e profissionais dos mais diversos departamentos arriscam a vida todos os dias para ajudar o próximo. É evidente que muitas partes do sistema precisarão melhorar nos anos que virão. Mas esperamos que a dedicação e a centralidade desses profissionais sejam preservadas — afinal de contas, a saúde do sistema e dos pacientes está nas mãos deles.


Fonte: Época Negócios

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