Fartamente encontrados em tabacarias e bancas de jornal no país, os cigarros eletrônicos têm a venda proibida no Brasil desde 2009 pela Anvisa. Porém, com o consumo em alta, fruto do intenso contrabando, o assunto volta com força ao centro do debate. De um lado, a agência reavalia a decisão de 14 anos atrás, com um parecer inicial que sinaliza pela manutenção do veto aos produtos. Do outro, um novo projeto de lei quer liberar o comércio dos dispositivos com a criação de normas sanitárias.
Ainda sem previsão para ser votado, o PL 5008/2023, de autoria da senadora Soraya Thronicke (Podemos - MS), propõe uma regulamentação com regras para produzir, vender, importar e exportar os aparelhos, que são também conhecidos como vapes ou pods. No entanto, a proposta tem sido alvo de entidades médicas, que se posicionaram de forma enfática contra o texto desde que ele foi apresentado no meio de outubro.
— Nos surpreendeu muito a proposta de algo nocivo à sociedade brasileira, sobretudo aos jovens, que são os mais comprometidos com os cigarros eletrônicos. Nossa posição, bem como de outras sociedades que se juntaram a nós, é de perplexidade. Nós conseguimos um sucesso que foi a redução para apenas 9% no número de fumantes no Brasil, feito reconhecido pela OMS. Mas ao permitir a livre circulação desses dispositivos, criamos uma nova legião de dependentes de nicotina — diz a presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), e pesquisadora da Fiocruz, Margareth Dalcolmo.
Quem também se manifestou foi a Associação Médica Brasileira (AMB), que classificou a proposta como um “desserviço aos cidadãos". É a mesma posição do corpo técnico da Anvisa, que orientou manter a proibição durante uma análise feita no ano passado, parte do processo de reavaliação da medida de 2009.
O parecer é inicial, e há a expectativa de que seja realizada uma consulta pública até o fim do ano. “Somente após a consolidação técnica das contribuições recebidas durante essa etapa é que o texto final da norma será pautado para a decisão final da Diretoria Colegiada da Anvisa”, explica a autarquia em nota. Porém, com a sinalização de que a regra será mantida, críticos elogiam o PL apresentado por Soraya e citam o avanço do consumo de produtos ilegais no país como um indicador de que a proibição não é efetiva. Segundo um levantamento do Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), do ano passado, 2,2 milhões de adultos no Brasil utilizam os vapes. Em 2018, eram menos de 500 mil.
— O dispositivo foi criado para consumir nicotina, que é permitida no Brasil. Então há um limbo, você permite o consumo, mas proíbe a comercialização. E quando você não regulamenta, favorece a criminalidade, o contrabando. O número de usuários só aumenta e ninguém sabe o que está dentro desses dispositivos. O que queremos não é uma liberação, é rigidez. Regulamentação, empresas sérias, pagamento de impostos e geração de empregos — defende a senadora.
O PL foi apresentado após uma audiência pública sobre o tema, que ocorreu no fim de setembro no Senado. O texto foi distribuído para três comissões, e está no momento com a relatoria da primeira, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), nas mãos do senador Eduardo Gomes (PL - TO). Soraya diz que a expectativa é que a votação, ainda sem data prevista, seja favorável ao projeto.
— Se, depois de todas as etapas, a lei for eventualmente autorizada, a Anvisa passará a não poder mais proibi-los e ficará obrigada a regulamentar de que forma o cigarro eletrônico passa a ser permitido no Brasil dentro de normas sanitárias. A lei supera o regulamento da Anvisa, que não pode contrariá-la — explica o diretor do centro de pesquisas em direito sanitário da Faculdade Saúde Pública da USP (Cepedisa), Fernando Aith.
Há, no entanto, um segundo PL em tramitação no Senado, ainda sem data para votação nas comissões às quais foi distribuído, que busca o oposto: tornar lei a regulamentação atual da Anvisa, incluindo na Constituição a proibição aos vapes. O texto foi apresentado pelo senador Eduardo Girão (Novo - CE) em setembro, pouco antes da nova proposta. Argumentos contra e a favor da liberação O debate sobre uma possível regulamentação dos cigarros eletrônicos no Brasil não é novo e divide opiniões em pontos muito além do combate ao contrabando. Passa por um suposto benefício como substituto do cigarro tradicional; pelo impacto em gerações mais novas e pelo efeito da liberação na arrecadação de impostos.
Quem defende cita exemplos internacionais, como no Reino Unido e na Suécia, em que autoridades de saúde pedem que os fumantes troquem o cigarro pelos dispositivos eletrônicos. Segundo uma análise da Agência de Segurança em Saúde do Reino Unido (UKHSA), eles seriam até 95% menos nocivos do que os modelos tradicionais.
— São mais de 80 países com regras estabelecidas. Fumar não é um hábito saudável, mas a proibição está muito mais próxima da liberação do que de uma regra para controlar os produtos.
O cigarro eletrônico é menos arriscado. Quando você queima a matéria orgânica, a combustão entrega uma infinidade de substâncias altamente tóxicas. O eletrônico não é inócuo, mas quando você compara os dois, ele é menos nocivo — diz a farmacêutica Alessandra Bastos, ex-diretora da Anvisa e consultora científica da British American Tobacco (BAT Brasil, ex-Souza Cruz).
Dados do Escritório Nacional de Estatísticas (ONS) britânico, porém, mostram que de 2021 para 2022 o consumo de cigarro eletrônico aumentou de 11,1% para 15,5% entre jovens de 16 a 24 anos, faixa em que o uso dos dispositivos é mais acentuado. Em contrapartida, o consumo do cigarro convencional caiu apenas de 13,2% para 11,6% no mesmo período.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) não recomenda a substituição do cigarro convencional por um modelo eletrônico como estratégia de redução de danos, e incentiva a implementação de regras mais duras, como a proibição. A ideia de que ele seria menos nocivo é também questionada por entidades médicas brasileiras. O coordenador da Comissão de Tabagismo da SBPT, Paulo Corrêa, cita de exemplo um estudo da Universidade John Hopkins, nos EUA, que encontrou milhares de químicos desconhecidos nos aparelhos, que não eram listados pelas fabricantes. Para os responsáveis pelo trabalho, é impossível prever no momento todos os riscos dos dispositivos.
— Como você regulamenta um produto que você nem sabe o que tem lá dentro? E o que sabe, é perigoso. Ele tem sim os mesmos riscos do cigarro convencional, não existe isso de ser menos nocivo. E você ainda acrescenta riscos de duas naturezas: a inalação de diversos metais que vazam do filamento que aquece o líquido e da própria bateria do dispositivo, e a Evali, que é uma doença respiratória aguda grave associada aos dispositivos — explica o professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Maior apelo entre jovens e impacto na arrecadação Além disso, o médico pneumologista da Rede D’Or, Gabriel Santiago, afirma que os vapes têm um nível mais alto de nicotina, o que pode favorecer o vício. Um estudo do Hospital das Clínicas da USP mostrou que o cigarro tradicional tem um limite de 1 mg da substância no Brasil, enquanto os eletrônicos chegam a 57 mg por ml. Segundo a AMB, um único vape equivale a um maço com 20 cigarros.
— Daqui a dez anos devemos ter um aumento absurdo de câncer de pulmão, algo que estávamos começando a diminuir por conta da redução do tabagismo — avalia Santiago.
Mônica Andreis, diretora-geral da Aliança de Controle do Tabagismo (ACT), cita ainda a preocupação com o apelo dos dispositivos aos mais jovens, que não demonstravam mais interesse no tabaco convencional. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), realizada em 2019 pelo IBGE, 16,8% dos adolescentes de 13 a 17 anos já experimentaram o cigarro eletrônico. — São os jovens que estão consumindo esse produto, não adultos fumantes que buscam uma alternativa. Então eles não estão sendo utilizados para redução de danos, mas sim para dar início a uma nova geração de tabagismo — argumenta.
Do outro lado, Lauro Anhezini Jr., chefe de assuntos regulatórios da BAT Brasil, acredita que a regulamentação pode justamente garantir que os produtos sigam as regras de venda apenas para maiores de 18 anos. O PL apresentado por Soraya, por exemplo, prevê pena de reclusão para quem comercializar os dispositivos a menores de idade.
— A experiência ao redor do mundo mostra que a regulamentação adequada diminui o apelo. Você discute por exemplo a presença de sabores, retirar aqueles que tendem a ser mais atrativos para os jovens. Se a proibição fosse efetiva, não teríamos esses números alarmantes de consumo entre eles — diz.
Por fim, há o argumento sobre a perda na arrecadação de impostos com a proibição da venda, e a circulação pelo contrabando. Cálculos da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG) estimam aproximadamente R$ 2,2 bilhões ao ano perdidos com base no número de consumidores no país.
No entanto, um estudo do Instituto de Eficácia Clínica e de Saúde (IECS), ligado à Universidade de Buenos Aires, na Argentina, de 2020, aponta um gasto de R$ 125,1 bilhões anualmente no Brasil com doenças causadas pelo cigarro convencional, enquanto apenas R$ 12,2 bilhões são arrecadados pelo produto. Para os pneumologistas, esse cenário pode piorar com a liberação dos vapes.
Fonte: O Globo
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