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'Chegaram a me proibir de estudar Medicina': o depoimento de uma médica que ficou tetraplégica durante a faculdade


Era madrugada de 31 de março para 1 de abril de 2006. Na época, eu era uma estudante de medicina do terceiro ano, e sofri um acidente de carro que levou a uma lesão medular e deixou uma sequela motora severa. Cheguei a ficar três meses internada por conta de outras intercorrências médicas que acumulei. Passado esse período, fui para a reabilitação, em São Paulo, num serviço ligado à USP. Era o melhor que tínhamos, mas ainda assim muito precário. Eram muitos pacientes para pouca gente atendendo. Embora meus pais fossem profissionais da saúde — meu pai é neurocirurgião e minha mãe dentista — fomos surpreendidos ao ver que quando uma pessoa tem alta do hospital após uma questão de saúde, ali se abre outro universo. Meu pai fala muito disso, o quanto ele virou melhor médico depois do meu acidente, pois passou a observar mais atentamente a perspectiva dos familiares.


Nessa altura, ao sentar, eu desmaiava. Algumas vezes, nas fisioterapias, eu passava frio e desconforto, e precisava esperar por horas para apenas colocar as mãos em uma caixa de areia, como forma de estimular a sensibilidade. Ao notar que eu precisava de uma reabiltação mais intensa, fui buscar tratamento no (hospital) Sarah Kubitschek, hoje Rede Sarah, em Brasília. Eu não sabia que existia um centro daquela magnitude no Brasil. Na época, foi maravilhoso. Fiquei quatro meses morando lá. Ali aprendi como sentar sem desmaiar e como tomar banho, por exemplo. Mesmo assim, hoje vejo que o trauma psicológico, psicossocial, é maior que o físico. Pois tudo que você sabe fazer depende de comandos (físicos) que você não tem mais. Não sabia coçar a cabeça, comer, nem fazer xixi. Nada. Eu desconhecia meu corpo e o rejeitava muito também.


Acho, porém, que no final das contas, é mais fácil de adaptar a maneira de fazer xixi, do que como você encara sua vida. Por mais que a gente valorize a importância dos braços e das pernas, vejo que a complexidade das relações humanas é muito maior. O maior desafio que tive foi colocar a cabeça no mesmo compasso do corpo. Isso foi uma loucura.


Minha rotina se tornou fazer fisioterapia de manhã, de tarde e de noite. Ou então terapia ocupacional. Porque eu tinha aquela crença de que as coisas que você alcança são fruto do seu esforço. Por isso, é preciso se esforçar até conseguir. A tal da meritocracia. E, pensando nisso, eu fiz o que podia e o que não podia. Em 2008, cheguei a ir pra China para ser cobaia de um tratamento de células-tronco, ou seja fui além do que eu podia para melhorar. E não melhorei.

Fui para lá sem saber direito o que ia acontecer. Meu pai até fala que foi como pai, não como médico. Porque acho que ninguém da área da saúde estava botando muita fé (nesse tratamento).


Antes disso, em janeiro de 2007, a gente foi tentar fazer a rematrícula da faculdade e reitor me proibiu de voltar a estudar medicina. Entrei com uma medida judicial e, em fevereiro, eu estava estudando. Acho que quando eu ouvi meu primeiro não, também porque eu sou um pouco teimosa, foi quando eu comecei a entender que essa construção social estava errada, sabe? Da forma como a gente vê e valoriza as pessoas por alguns motivos. Porque, de alguma forma, eu vivi os dois lados.


Eu vivi como a pessoa que estava num lugar de privilégio. Na época do acidente, eu era uma jovem rata de academia, com um quadradinho na barriga. E depois me vi na cadeira de rodas, usando cinta para poder ficar com o corpo ereto. Eu vi o lado de quem está olhando de cima e vi o lado de quem está recebendo o olhar lá de baixo. E eu acho que isso entrava como uma faca em mim. Quando eu recebia um olhar preconceituoso, eu reconhecia, porque de alguma forma pensava igual, entendia o que a pessoa estava sentindo.


Só que eu comecei a perceber que essas pessoas estavam erradas, à medida que eu sentia disposição para fazer as coisas. Eu continuava cheia de ideias, eu continuava afim, eu continuava com vontade, eu continuava interessada. Querendo ser médica, querendo sair, querendo aprender, querendo contribuir, querendo ajudar, querendo fazer tudo.


Fui muito testada na faculdade, muito chamada à prova. Tive um professor que disse: medicina não é pra você, vai fazer outra coisa da sua vida. Quando a instituição disse que eu não podia ser médica eu também não sabia se podia, mas eu sabia que queria tentar. E conforme a gente tentava (junto a outros profissionais e colegas), eu comecei a ver que as adaptações muitas vezes eram coisas simples. Não era nenhum bicho de sete cabeças.


Comecei a não aceitar esse negócio de “não vai dar” sem nenhum tipo de argumento. Eu era aluna tanto quanto as outras. Só que diziam que se eu não conseguisse fazer alguns exercícios práticos eu não ia conseguir me formar. Só que, nesse caso, era preciso fazer o esforço de pensar diferente (para poder adaptar os exercícios práticos). Eu acho que esse era o grande lance. E é assim até hoje que funciona para que seja feita a inclusão.


Na disciplina de cirurgia, as costureiras do hospital fizeram um avental mais curto e mais largo pra eu usar sentada na cadeira. Em vez de amarrar o tecido no meu corpo, nas costas, ele pegava a cadeira inteira. A carpintaria fez uma plataforma, um quadradinho de, sei lá, de uns 40 centímetros, 30 centímetros, para eu subir e ficar mais alta assistindo às cirurgias.


Algumas ideias de adaptaçao não deram certo, mas outras deram e viabilizaram as minhas possiblidades. Me cerquei de quem queria pensar fora da caixa.


Me perguntaram há poucos dias se eu estava indo hoje em dia às universidades ensinar às pessoas (sobre acessibilidade). Mas, não. Ninguém tem se interessado. Acho que existe uma arrogância natural do segmento. Somos formados para dizer: olha, ninguém vai questionar a tua conduta. A tua voz, a tua decisão é soberana.


A gente não precisa de tanta especificidade (na formação dos profissionais de saúde) o básico, que é o acolhimento universal, já faz muita diferença. Acho que as pessoas talvez estão tentando ser tão específicas que falta o básico.


Esses dias eu estava conversando, batendo papo com uma médica ginecologista que é mãe de uma menina cadeirante. Por conta disso, ela começou a olhar diferente pra questão da inclusão. Como ela atende algumas meninas com síndrome de Down, começou a ouvir dos colegas: ah, você é especialista em meninas com deficiência intelectual? Ela falou: não, sou especialista em mulheres. O que interessa são as especificidades que vêm com cada mulher, explicou.


Eu acho que o ser humano tem uma dificuldade enorme de encarar o diferente como uma coisa positiva. Quando, na verdade, é o que enriquece o nosso arcabouço humano, nosso repertório de humanidades.


Depois de formada, no meu cargo de gestão, eu era a mais nova gestora de um grupo de 35 médicos. Isso foi em uma empresa de call center. Eu era a mais nova, mulher, tinha menos de 30 anos e sou uma pessoa com deficiência. Eu tinha que, de novo, fazer três vezes mais para me provar. Aquela história de sempre.


Vivo, neste momento, em um mundo muito diferente do que aquele quando eu sofri o acidente há 19 anos. No ano que vem fará 20. Mas ainda estamos engatinhando infelizmente (no reconhecimento de que é preciso incluir pessoas com deficiência) eu acho que é um processo que não tem mais como voltar atrás. Eu só lamento que temos que ter muito desgaste, muito sofrimento, muita perda de tempo e de dinheiro para demonstrar que essa é uma mudança que vai acontecer com a sociedade. Acho que essa ficha tá começando a cair. Tem muita gente que só realiza a equidade por que é enfiada goela abaixo. O envelhecimento gradual da população, porém, deixará tudo mais escancarado. Será preciso incluir mais.


Hoje trabalho em uma empresa (Daniela é Líder de Saúde e Medicina Ocupacional na Bayern) que genuinamente acredita que existem espaços para todo mundo e que acredita no potencial, acredita no profissional, no talento. Independente do conjunto de características que vem com esse talento. Tem um match com meus valores.


Eu acordo todos os dias para fazer com que as pessoas incorporem, tanto quanto a lente de saúde, quanto a lente de inclusão em todos os processos. Essa é minha contribuição. Para mim é muito óbvio que a inclusão é um ganha-ganha. Não é benevolência. A inclusão que envolva a saúde, o bem-estar é ganha-ganha. Não é “plus”. Não é uma perfumaria.

*Em depoimento à Mariana Rosário


Fonte: O Globo

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