Aos 8 anos de idade, a fisioterapeuta Maria de Fátima da Silva, 51, teve febre reumática. Foi levada às pressas ao hospital e, depois de uma bateria de exames, os médicos encontraram algo diferente no sangue da paciente: os níveis de triglicerídeos estavam muito altos, acima do normal para a idade. Os profissionais decidiram focar no tratamento da doença principal e deixaram os resultados dos testes de lado.
Dez anos depois, Fátima ficou grávida e, durante o pré-natal, novamente, os altos níveis de triglicerídeos chamaram a atenção. “Comecei a fazer o tratamento com os remédios que a gente tinha na época, mas nada surtia efeito e ninguém sabia explicar direito qual era a causa do meu problema”, lembra. Fátima conta que vários médicos a culparam, afirmando que a alimentação dela era desregulada e responsável pelo quadro.
“É muito difícil escutar isso, disseram que era porque eu não me alimentava direito. Uma médica chegou a dizer que eu e minha irmã, que também tem o problema, tínhamos que nascer de novo para resolver”, conta. As duas irmãs não permitiram que suas imagens fossem divulgadas nessa reportagem, mas não são obesas e levam uma vida de hábitos saudáveis.
Triglicerídeo é o nome da molécula de gordura que viaja pelos vasos sanguíneos do corpo humano. Ela é produzida pelo fígado e um cardápio com alimentos gordurosos, carboidratos refinados e bebidas alcoólicas aumenta seus níveis no sangue.
Em excesso, os triglicerídeos podem causar doenças cardiovasculares, entupir vasos sanguíneos e bloquear ductos no pâncreas, provocando quadros de pancreatite aguda, como já aconteceu com a fisioterapeuta. Os altos níveis de gordura podem levar até a alguns tipos de câncer.
Em pessoas saudáveis, enzimas ajudam a dissolver a gordura, e uma dieta equilibrada já é suficiente para evitar o problema. Porém, em alguns casos, não importa o regime ou o peso — os níveis de triglicerídeos são altos demais. A disfunção é silenciosa e, a princípio, não há sintomas pronunciados.
O nível saudável de triglicerídeos no corpo humano é de 150 mg/dL. Quando a taxa ultrapassa os 1.000 mg/dL é considerada extremamente elevada. No último exame de Fátima, feito depois de uma semana sem se exercitar, o valor registrado foi de 9.708 mg/dL — o número é tão alto que impossibilita a medição do colesterol no sangue.
Ela já foi internada com pancreatite três vezes, sendo que, em uma delas, ficou 20 dias na UTI. Prometeu a si mesma que faria todo o possível para não voltar àquela situação, e adotou uma dieta restrita. “Eu tenho pavor de me alimentar, morro de medo de ser hospitalizada de novo, sigo uma dieta muito fechada e faço exercícios todo dia”, explica.
40 anos de espera pelo diagnóstico
Só em 2020 Fátima conseguiu descobrir o nome de seu problema de saúde. Em Brasília, a fisioterapeuta procurou um endocrinologista para seguir o tratamento e ele levou o quadro dela a um grupo de colegas.
Uma delas, a cardiologista Ana Cláudia Nogueira, do Hospital de Base do Distrito Federal, se interessou pelo caso. Ela conta que, quando Fátima foi vê-la, já era uma investigação de possível origem genética. “Tenho contato com vários pacientes portadores de hipertrigliceridemia, mas nem todos os casos são de origem genética. A maioria deles é sintomático pela pancreatite, e tanto a Fátima quanto a irmã dela tiveram vários episódios”, lembra.
Depois do teste genético, veio, finalmente, o diagnóstico: síndrome da quilomicronemia familiar (SQF), uma condição hereditária considerada extremamente rara na qual o paciente não possui ou tem baixa quantidade de uma enzima responsável por digerir as gorduras. A estimativa é que uma pessoa a cada um milhão tenha o problema de saúde.
Fátima conta que os principais sintomas são dor de cabeça, surgimento de bolinhas de gordura na pele do corpo inteiro, visão turva e com muita secreção no olho, baixa de vitamina D, labirintite e pressão alta.
A irmã dela, Silvânia da Silva, 44, tem um caso mais grave e já sofreu mais de 200 episódios de pancreatite. “O pâncreas dela está em falência, está sobrecarregado e não aguenta mais a gordura. Uma parte do órgão já necrosou. Quando entrei para buscar tratamento, não foi só pensando em mim, e sim, principalmente, nela”, explica. Silvânia foi diagnosticada três meses depois da irmã.
A cardiologista Ana Cláudia Nogueira lamenta que a medicação disponível não faça efeito no caso das irmãs, e as duas tenham que manejar a doença basicamente com dieta e exercícios físicos. “Há risco altíssimo de morte, porque a pancreatite aguda é uma situação clínica muito grave. E elas acabam tendo pancreatite de repetição. É uma doença que coloca a vida delas em risco”, afirma.
Fátima conta que precisou parar de trabalhar por conta da doença e tem a imunidade muito baixa. “Só consegui descobrir com 48 anos. Nunca desisti de buscar, queria saber o que eu tinha. Não sou obesa, me cuido muito, mas é bem difícil. O que a gente tem hoje não é vida, nos privamos de tudo”, lamenta.
“É uma doença que compromete muito a qualidade de vida, é preciso dieta muito restritiva e múltiplas internações ao longo dos anos”, complementa a cardiologista.
Tratamento parado
A fisioterapeuta afirma que a doença é uma bomba-relógio: sem controle, os sintomas vão piorando. Nenhum dos remédios que elas usam hoje funciona, apesar do gasto de mais de R$ 600 mensais. A esperança é um medicamento que já foi aprovado na Europa e também pela Anvisa — porém, o remédio é de alto custo, cerca de R$ 200 mil a caixa.
O medicamento volanesorsena recebeu registro na Anvisa em agosto de 2021, e teve análise priorizada por ser a única estratégia terapêutica eficaz para pacientes com quilomicronemia familiar. “Em pacientes com SQF, o tratamento com volanesorsena resultou em reduções consistentes dos triglicerídeos variando de 60% a 77% em 3 meses em 3 estudos separados”, afirma a agência, em publicação no site.
As duas entraram na justiça para garantir a compra do remédio pelo SUS e já obtiveram decisão favorável, mas a compra ainda está passando pelos trâmites necessários. “O dinheiro está retido para comprarem o remédio, mas não é suficiente para cobrir as taxas, nem a logística de importação”, explica a fisioterapeuta.
“Estamos na luta. A gente vive com a esperança nesse remédio, mas, cada vez que vem uma notícia boa, tem algo para atrapalhar. Queremos abrir portas para outras pessoas, a gente sabe que muitos devem ter a doença e nem sabem”, diz Fátima.
Fonte: Metrópoles
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