O ator curitibano Victor Ferreira, de 20 anos, é um exemplo de que "a vida imita a arte". O jovem interpretava um personagem que estava dentro do espectro autista quando recebeu o próprio diagnóstico.
Na série "Use Sua Voz", Victor deu vida a Arthur, que vive com Transtorno do Espectro Autista (TEA) desde a primeira infância. As identificações com traços do personagem surgiram ainda nos testes para o papel.
"Eles me deram uma folha que falava sobre as características do personagem, do que ele gostava, e tudo mais. Não estava escrito que ele era autista nessa página. Só estava as características dele, que indicavam ser um personagem autista", relembra.
Ao g1, o ator conta que nessa época desconfiava que estava dentro do espectro e, com isso, foi atrás de um diagnóstico adequado.
Victor não é exceção. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que existam 70 milhões de pessoas com o TEA no mundo, sendo cerca de 2 milhões delas no Brasil.
O TEA é caracterizado, principalmente, pelas dificuldades em comunicação e interação social, e presença de padrões de movimentos restritos e repetitivos. Pessoas no espectro têm uma forma diferente de vivenciar experiências, agir e interpretar o mundo.
A psicóloga Karen Scholz explica que, apesar das características comuns que levam a um diagnóstico, o autismo se manifesta de maneiras diferentes em cada um.
"Tem uma frase que eu gosto muito, que fala assim: 'Existe autismo para cada um'. Por isso que a gente chama de espectro, vai aparecer de uma forma muito particular para cada pessoa", afirma a psicóloga.
Enquanto interpretava Arthur, Victor reconheceu diversas situações pelas quais havia vivido na vida real.
"Eu passei por alguns lugares que uma pessoa que é autista sabe o que é estar naquele lugar. Então, obviamente, teve uma identificação de elementos. Eu vi muito da minha adolescência no Arthur. Ele passou por momentos que me eram bastante familiares. Acho que essa foi a minha maior fonte de inspiração e identificação com o personagem", conta Victor.
Diagnóstico tardio
A situação passada por Victor Ferreira representa um exemplo do chamado diagnóstico tardio.
De acordo com a psicóloga, uma pessoa que recebe um diagnóstico de autismo depois dos 18 anos pode considerar que foi diagnosticada tardiamente.
A profissional explica que a situação é comum porque o transtorno é muito associado a sinais percebidos na infância.
Para ela, a qualidade de vida de um paciente após a identificação do transtorno pode aumentar. Isso porque, com o diagnóstico, a pessoa pode ter as necessidades específicas relacionadas ao TEA melhores compreendidas, acesso a direitos legais e autoconhecimento.
"Acredito que o principal impacto seja em relação ao sentimento de pertencimento, que muitas vezes foi muito batalhado durante uma vida toda e, muitas vezes, muito frustrado. A pessoa acaba reproduzindo o comportamento de outras pessoas."
Segundo Scholz, geralmente, pessoas que recebem o diagnóstico tardio têm um nível de suporte 1, no qual os sinais de autismo são mais sutis e mais "facilmente" mascarados e/ou negligenciados. Leia mais sobre a seguir.
Porém, com o aumento da conscientização em torno do TEA, cada vez mais pessoas estão tendo acesso a um diagnóstico adequado, ainda que tardiamente.
"Nós temos pessoas na idade adulta recebendo diagnóstico, nós temos pessoas idosas recebendo o diagnóstico, o pode mudar bastante coisa. Podem mudar infinitas coisas na vida desse indivíduo", afirma.
Foi exatamente dentro desse aspecto que o ator Victor se percebeu após o diagnóstico que recebeu. Para ele, depois disso, muitas coisas passaram a fazer sentido.
"Acabou sendo um alívio entender porque o meu cérebro funciona assim para determinadas questões. Quando eu acabo entendendo essas coisas que estão comigo desde a minha primeira infância, eu consigo organizar isso melhor e não me sentir culpado por coisas que eu não deveria me sentir culpado, ou como eu vou organizar o meu ciclo social e entender o que é importante para mim, e o que é importante para as pessoas que também são importantes para mim", desabafa.
Estereótipos
Victor conta que junto com o diagnóstico veio o medo do preconceito influenciado pelos estereótipos associados a pessoas autistas.
Inicialmente o ator evitou falar sobre o TEA por receio de como isso poderia afetá-lo no mercado de trabalho. Porém, tudo mudou após viver o personagem.
"Depois de viver três meses com personagem que sabe que é a autista do começo ao fim da trama e não tem nenhum problema com isso, é uma característica dele e isso não é tudo sobre o personagem, acabou mudando o meu ponto de vista sobre como eu me posiciono no mercado de trabalho e como eu me posiciono como artista", relembra.
Ainda de acordo com o ator, construir o personagem que traz o autismo como apenas uma das características também foi importante pessoalmente para Victor.
"Eu acho que o principal foco do Arthur, ou o foco que eu gostaria de trazer como artista, é que as pessoas se sintam confortáveis com quem elas são, com a neurodivergência delas e, evidentemente, se diagnóstico é importante para alguém por que não ir atrás dele?", incentiva.
A psicóloga Scholz reitera a importância da desconstrução dos estigmas associados às pessoas dentro do espectro para ser possível dar o acesso à informação adequado para a população.
"As pessoas autistas são pessoas que casam, são pessoas que namoram, são pessoas que têm relações sexuais, são pessoas que têm amizades. São pessoas que são homens, são mulheres, são pessoas brancas, são pessoas pretas, são todos os tipos de pessoa", reforça.
Impactos
Como Scholz explica, um dos motivos associados ao diagnóstico tardio de pessoas autistas que estão dentro do nível 1 de suporte é a não obviedade dos sinais do transtorno.
"Seria o autismo que passa mais batido, que as pessoas não conseguem ver as manifestações de uma forma tão óbvia, porque não envolve, necessariamente, atraso de linguagem, nem estereotipias – que são movimentos motores e que ocorrem de uma forma muito repetida, principalmente em momentos de muita excitação, de muita agitação", descreve.
Porém, com o tempo, estes pacientes passam a ter que lidar com questões sociais, que demonstram estes sinais.
"Essas pessoas crescem, são crianças que [os sinais] realmente passam batido. Elas vão crescendo e daqui a pouco elas se deparam com situações da vida adulta, que seriam relações amorosas, relações afetivas em geral, com amigos, até mesmo família, no mercado de trabalho, e começam a perceber que alguma coisa está diferente", afirma.
Entre os exemplos apontados pela psicóloga estão leituras de comportamento não-verbal.
"Aquela olhada que você dá quando você vai paquerar, nem sempre a pessoa ali que não domina a comunicação não verbal vai compreender isso como algo que tem uma intenção", exemplifica.
Além disso, Scholz reforça que o diagnóstico tardio é ainda mais frequente em mulheres.
"As mulheres têm um atraso ainda maior nesse diagnóstico, porque muitas vezes é confundido com outras coisas, com outros transtornos mentais, e aí vem vários diagnósticos errados.
Também não dá pra deixar de citar todo um aspecto social e cultural que faz com que as meninas aprendam, teoricamente, aquilo que lhe convém e não convém, os comportamentos 'adequados', como rir, baixo, sentar de determinada forma", afirma.
Além disso, a psicóloga lembra da estratégia do "masking", ou camuflagem, muito utilizada por pessoas autistas, especialmente aquelas que não possuem um diagnóstico ou uma clareza dos sinais.
O masking é a pessoa autista evitar certos comportamentos com o objetivo de serem percebidas como neurotípicas, o que, segundo a profissional, pode gerar uma sensação de fadiga emocional muito grande.
Níveis de suporte
O Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) considera três níveis de autismo, classificados com base no nível de suporte necessário:
Nível 1 - Exige apoio leve
É sutil e caracterizado por dificuldades na interação social e comunicação. Pode haver também a presença de comportamentos repetitivos e interesses restritos, normalmente concentrados em assuntos específicos.
Pessoas deste nível podem ter dificuldade em iniciar ou manter conversas, interpretar expressões faciais e entender nuances da linguagem. Por se apresentarem de forma mais sutil, normalmente essas dificuldades não são limitantes para a interação social.
Nível 2 - Exige apoio moderado
Neste nível, há dificuldades significativas na comunicação e interação social.
Essas pessoas podem apresentar dificuldades para se adaptar a mudanças na rotina e necessitar de apoio extra para lidar com situações sociais mais complexas.
Assim como no nível anterior, pessoas no nível 2 podem enfrentar desafios para iniciar ou manter conversas, interpretar expressões faciais e compreender nuances da linguagem, podem apresentar comportamentos repetitivos e ter interesses intensos e restritos.
Nível 3 - Exige muito apoio
Pacientes que se encaixam no nível 3 apresentam um déficit de comunicação verbal e não verbal de forma mais perceptível.
A pessoa geralmente possui dificuldade em abrir-se para interações sociais que partam de outras pessoas, muita dificuldade em mudanças e comportamentos repetitivos constantes.
Além disso, tendem a apresentar um perfil comportamental inflexível e podem ter dificuldades em se adaptar a mudanças.
Fonte: G1
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