Já são mais de 6,5 milhões de pessoas forçadas a deixar suas casas na Ucrânia após a invasão das forças russas, que completa um mês nesta quinta-feira (24). A Organização das Nações Unidas (ONU) informou que mais de 3 milhões deixaram o país e estima que esse número pode chegar a 4 milhões. Em sua maioria, crianças, adolescentes e mulheres chegam aos países vizinhos sem seus pais, parceiros, filhos, irmãos ou amigos. Pela lei marcial, os homens ucranianos entre 18 e 60 anos estão proibidos de deixar o território ucraniano. Sem contar as mulheres que também optaram por ficar.
Muitos dos que chegam a Polônia, Moldávia, Eslováquia e Hungria pelas fronteiras vivenciaram situações de violência, incerteza, medo e separação. E para entender os impactos na saúde mental de quem testemunha e foge de guerras e conflitos, o g1 conversou com o consultor internacional Márcio Gagliato, que trabalha no campo humanitário pelas agências da ONU, como OMS e Unicef, dentro da temática de saúde metal e psicossocial em crises. Gagliato já atuou na Faixa de Gaza, Síria e também durante a crise de refugiados de 2015, na Sérvia.
Leia na entrevista abaixo:
Impactos psíquicos em quem foge de conflitos;
A vulnerabilidade de crianças que vivenciam violência;
A importância de políticas humanitárias participativas dos afetados;
Como lidar com pessoas afetadas por guerras.
Como a saúde mental de quem foge de uma guerra é afetada? Márcio Gagliato – Uma fala muito comum de quando se aborda essa questão de conflitos e de guerra é o adoecimento psíquico das pessoas e como elas são afetadas diretamente, principalmente na questão de trauma. Isso traz uma visibilidade significativa, mas tento trazer outra abordagem, que é mais focada no sofrimento, na angústia, na dor e também na resiliência, indo além da perspectiva do adoecimento psíquico em si. Evito falar de eventos traumáticos e procuro trazer mais a perspectiva de eventos potencialmente traumáticos. Depende muito de pessoa para pessoa e de seu repertório, da sua capacidade, da sua idade, da sua exposição. Está muito relacionado ao significado que aqueles eventos tiveram para essas pessoas. Dentro do aspecto de saúde mental, qual a sua análise sobre a guerra na Ucrânia? Márcio Gagliato – Já estive na Ucrânia três vezes [antes da guerra] e, realmente, o que pode se esperar é que níveis de estresse, sofrimento, dor e angústia vão aumentar significativamente os problemas crônicos de saúde. Isso se dá por vários fatores: os dois anos da pandemia de Covid-19 e agora a guerra. E, falando do leste da Ucrânia, existe um conflito há pelo menos oito anos. Você tem ali, por exemplo, uma geração de crianças que cresceram durante a guerra. Quais são as consequências de um conflito como esse? Márcio Gagliato – É esperado um agravamento de problemas crônicos de saúde mental e também questões imediatas. Ou seja, um sofrimento intenso, agudo, que gera uma ansiedade profunda, que se não é adequadamente respondida, pode ter consequências a médio e longo prazo dependendo de sua gravidade, como ansiedade e depressão. Mas isso não é uma condição que dá para se determinar que de fato vai acontecer, depende de muitos outros fatores. Que indivíduos estão em maior vulnerabilidade? Márcio Gagliato – Desse grupo, entre os que estão em maior vulnerabilidade e precisam de uma maior atenção, são as crianças. As crianças têm um risco elevado por conta dos riscos de separação numa situação de fuga ou daquelas que acabam ficando. Tem também os risco dos perigos da fuga, das necessidades que uma fuga pode acarretar, o testemunho da violência em si ou na quebra de uma rotina (uma rotina que é protetora, de ir à escola rotina e brincar). Elas estão testemunhando um nível de insegurança e violência que é mais do que qualquer pessoa deveria experimentar em uma vida inteira. Isso é grave, é sério e é importante. Além do que eu comentei antes, há crianças que tudo que conheceram e onde cresceram, foi guerra. Até que ponto a separação e a violência psicológica vão afetar a vida dessas crianças? Márcio Gagliato — Vai depender de uma série de fatores. Vai depender da assistência que é oferecida, da proteção que é oferecida, do bem-estar que é oferecido e, por isso, que ações humanitárias são muito importantes. Depende também do nível de exposição aos eventos potencialmente traumáticos, de violência e também das narrativas que vão se tornando predominantes em relação ao conflito e à guerra. Como lidar com crianças que vivenciam este tipo de estresse? Márcio Gagliato — Existem práticas para lidar com crianças, sejam aquelas estejam vendo aquilo na TV e ficando em muito estresse, muita angústia e muita ansiedade, ou aquelas que estão sendo diretamente afetadas. De maneira geral, vai depender muito dessa faixa etária e da capacidade de compreensão daquela criança ou jovem sobre aquilo que está acontecendo ao seu redor. Crianças pequenas, de certa forma, o conflito afeta na medida em que seus pontos de referência estão afetados. O que isso quer dizer? Que ela vai ser afetada à medida que o seu cuidador está sendo profundamente afetado, angustiado, triste, mais nervoso. É a capacidade de leitura que essa criança consegue fazer. De maneira geral, é importante tentar fazer um esforço para entender o que elas sabem, como elas leem o que está acontecendo ao redor delas e como estão se sentido com aquilo. Sem forçar a criança falar, mas fazer uma tentativa de diálogo. Assegurar também essa criança e esse jovem que está tudo bem se sentir apreensivo, triste ou preocupado nesse momento.
Também acho importante o que eu chamo de 'promover a compaixão' e evitar estigmas ou mensagens de ódio, ou exposição à narrativas pesadas. Ou seja, focar na compaixão como, por exemplo, na ajuda que está sendo prestada. A promoção desse bem-estar é uma forma de lidar com esses momentos de muita violência. Que medidas podem ser adotadas por organizações que queiram ajudar quem foge de uma guerra? Márcio Gagliato — Quando se fala de saúde mental, dessa população e de como elas são afetadas, é importante pensar em ações que tenham como objetivo proteger e promover bem-estar, que passam, necessariamente, por responder às necessidades básicas e está entre seus direitos fundamentais.
Há uma gama de ações que ajudam na diminuição do estresse e que tentam, também, de certa forma, oferecer ações, intervenções e abordagens. São ações que favorecem um senso mínimo de controle dessas pessoas. Por que isso é importante? Porque empodera. Uma situação de guerra, de fuga e sobrevivência gera uma sensação de falta de controle sobre você, o seu dia a dia e o seu futuro. E, nesse sentido, ações que são consideradas pequenas, elas são ações que favorecem o controle do aqui e do agora. É importante a participação dessas pessoas, de oferecer a oportunidade de entenderem que são protagonistas do seu autocuidado e ter uma política humanitária de participação. E também, um outro aspecto muito importante, são ações que favorecem a conexão umas com as outras e com os seus entes. Além disso, acima de tudo, o que eu aprendi no trabalho humanitário ao longo da vida é o aspecto que eu chamo de esperança. Em 2015, quando estava no meio dessa crise de refugiados na Europa, estava em uma estação de trem onde mais de 5 mil pessoas passavam todos os dias, também em fuga desesperadora . Lembro de voluntários na Sérvia que estavam lá para dar apoio para essa população. Ali tinha uma mulher em profundo estresse, profundamente perturbada, e que esses voluntários foram dar uma assistência e um acolhimento para entender o que estava ocorrendo. Quando descreveram para mim o que estavam fazendo, disseram: 'o que essas pessoas estão vivendo é uma jornada profundamente desumanizadora e o que a gente faz, nesses poucos momentos que a gente tem com essas famílias, é uma presença que seja profundamente humanizadora'. Isso é potente, isso é profundamente humanizador, isso é profundamente esperançoso. Estamos, claro, falando de uma série de intervenções e cuidados que é muito mais ampla e que envolve basicamente todos os afetados.
Fonte: G1
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