Em 2020, o ginecologista Olímpio Moraes, diretor médico da Universidade de Pernambuco, chegou ao hospital sob gritos de “assassino” porque ia interromper a gestação de uma menina de 10 anos, do Espírito Santo, num caso de repercussão nacional. Mas ele não se intimidou naquele momento e nem agora:
— Alguém tem de falar. Eu posso ficar velho, mas não terei sido omisso. Deixar de falar por covardia ou omissão não combina comigo. O problema é o silêncio dos bons.
Assim, ele segue à frente de um dos poucos serviços no país que ainda realiza abortos legais após as 22 semanas de gestação. Agora, um projeto de lei tramita na Câmara dos Deputados equiparando aborto a crime de homicídio.
Em entrevista ao GLOBO, o médico explica por que defende o aborto legal, ainda que após as 22 semanas, suas causas e consequências do ponto de vista de saúde.
Como o senhor vê esse projeto?
Com muita apreensão. As pessoas não têm ideia do que estão fazendo. Políticos mexem com saúde e não têm experiência, nunca atenderam uma mulher vítima de violência. Deviam ouvir as pessoas que estão trabalhando na linha de frente. Quando se faz lei sobre transporte, educação, agronegócio, chama-se alguém que entende do assunto. Mas quando se fala de direitos reprodutivos das mulheres, não querem ouvir as pessoas da área. Trabalham com seus dogmas, sem evidências científicas ou respeito às recomendações da Organização Mundial de Saúde. Foge do que deveria ser uma democracia laica.
Muita gente ainda não entende por que fazer um aborto após 20, 22 semanas. O senhor pode explicar?
Cerca de 80% dos estupros são contra crianças e adolescentes que muitas vezes nem sabem o que é gravidez. São violentadas por pessoas em quem elas confiam, próximas, como pai, padrasto, tio, avô, e nem têm noção do que está acontecendo. Meninas de 10, 11 anos, indefesas, que têm medo das ameaças e culpa. Como não têm ciclo menstrual regular, não conhecem sintomas de gravidez, a náusea a mãe pensa que é verme, virose, só se descobre a gravidez quando a barriga aparece e isso só é visível para o leigo com quatro ou cinco meses de gravidez. Depois elas fazem consulta e o médico que deveria dar informações de forma imparcial e clara não o faz.
Mas a lei não coloca esse limite de tempo, certo?
Uma portaria de 2012 orienta que o serviço ocorra até 22 semanas, mas não é um impeditivo, é uma recomendação. É uma orientação técnica, a lei brasileira não bota limite, tanto para menina de 10 anos, que foi estuprada, quanto para a mulher de 26 anos com risco de morrer não existe prazo. É muito claro, ninguém quer que ultrapasse 22 semanas.
O próprio sistema empurra o aborto para frente?
Tem várias barreiras. É preciso mais agilidade. Mas as pessoas que querem proibir aborto com 22 semanas são as mesmas que criam barreiras levando a gravidez a chegar a 22 semanas. Eu faço tudo para que não aconteça após esse período.
Qual o papel dos médicos nessa situação?
Se o Conselho Federal de Medicina está preocupado com abortos após 22 semanas, devia bancar uma campanha para que os médicos encaminhassem as mulheres o mais rápido possível. Toda secretaria de Saúde teria que ter o serviço disponível por lei. Muitos médicos negam ajuda, enrolam, passam informações erradas. Usam a objeção de consciência de forma antiética porque está no código médico que ela não pode causar danos ao paciente. Nos países europeus o médico não tem direito de objeção de consciência. Não posso causar dano a alguém por causa da minha crença. Se o profissional é Testemunha de Jeová não pode negar uma transfusão de sangue a um paciente. É a mesma coisa.
Qual o impacto da gestação nessas crianças e adolescentes?
Há pelo menos 14 mil gestantes abaixo de 14 anos e só 4% dessas meninas têm acesso ao aborto por estupro. Uma menina de 10 anos tem risco de morte de duas a cinco vezes maior por complicações na gestação e sequelas. Além disso, no Brasil, a principal causa de mortes de adolescentes são complicações da gravidez e suicídio devido à violência sexual.
Há também os abortos em caso de anencefalia. Existe demora no diagnóstico?
O diagnostico é dado geralmente a partir de 12 semanas, ou seja, três meses, mas as vezes o ultrassom é feito tardiamente, e a mulher já está com cinco meses ou 20 semanas. Às vezes ela faz o exame e o médico pede para repetir para confirmar. O tempo vai passando. Desde 2012, o Supremo Tribunal Federal disse que se não há cérebro não há vida. Não é aborto porque não há vida. Elas são condenadas a, ao invés de comprar um berço, comprar um caixão no fim da gravidez. Todo mundo pergunta se é menino ou menina, elas sentem o feto que não vai viver. É um velório prolongado por meses.
E nos casos de risco de morte para a mulher? Também pode ser necessário ultrapassar as 22 semanas?
Há situações em que a mulher tem o risco de morte, por exemplo, com 22 semanas, ela chega com uma infecção intrauterina, um abortamento infectado, que transforma em sepse e, se não for tratada, morre. Situações em que a mulher pode ter uma cardiopatia com 22 semanas e precisa de aborto. Uma gravidez ectópica, fora do útero, que a gente sabe que se continuar vai causar hemorragia interna, com perfuração de intestino, de bexiga que leva à morte.
O que é assistolia fetal, procedimento utilizado em fetos acima de 20 semanas?
A assistolia é um procedimento que segue orientação da OMS e da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia para evitar que o feto com 20 semanas nasça vivo. Se nascer vivo, isso causa muito sofrimento. Vai para cuidados paliativos, fica na UTI, vive pouco tempo. E se sobreviver é com sequelas graves. Não é justo uma mulher sair da maternidade com um feto que ela não quer, que vai ter um custo para o resto da vida. Os estudos mostram que é indolor para o feto. Com o feto morto, se induz o aborto, e será expulso via vaginal. Não é um parto.
Outra mentira é que esse procedimento é feito com oito ou nove meses. Isso não ocorre. Existe um ou outro caso de sete meses, como aquele de Santa Catarina, porque enclausuraram a menina por motivações ideológicas.
Como é a distribuição atual dos serviços de saúde que realizam o aborto legal?
O Brasil é um país continental em que apenas 3,6% dos municípios têm serviço de abortamento legal. De 100 serviços cadastrados, metade funciona. E a distribuição não é homogênea. Aqui em Pernambuco, somos um centro de referência. No Nordeste só tem dois serviços que interrompem a gestação após 22 semanas. São cerca de dois casos por mês. Acredito que isso aconteça em torno de 2 a 3% das interrupções nos casos de estupro, exatamente as meninas mais vulneráveis, e 80% nos casos de malformações incompatíveis com a vida. A pessoa adulta sabe o que é gravidez e muitas vezes o que é estupro, por isso consegue acesso mais rápido ao aborto. Já meninas, não.
Fonte: O Globo
Comments