A psicóloga brasileira Luana Marques tem uma trajetória inspiradora. Ela nasceu e cresceu em Governador Valadares, município no interior de Minas Gerais, venceu a ansiedade gerada por uma uma infância marcada por falta de estabilidade financeira e brigas entre os pais e conseguiu não só fazer toda sua formação acadêmica nos Estados Unidos — da graduação ao pós-doutorado — como se tornou professora e pesquisadora de uma das mais importantes universidades do mundo.
Hoje, Marques é professora de psicologia da Escola de Medicina de Harvard e primeira latina a ocupar a presidência da Associação Americana de Ansiedade e Depressão (ADAA). Durante duas décadas de carreira, ela se dedicou ao estudo de transtornos de ansiedade e traumas. Recentemente, ela lançou no Brasil o livro "Viver com ousadia", pela editora Sextante.
A obra traz um conjunto de habilidades baseadas na ciência e entremeadas com as experiências pessoais de Marques, criadas para ajudar qualquer um a reprogramar sua maneira de lidar com o desconforto e o estresse. Em entrevista ao GLOBO, a psicóloga explica por que não é possível acabar com a ansiedade, mas também por que é necessário mudar a forma como lidamos com essa ansiedade. Ela também explica três estratégias simples e práticas para fazer isso.
O título do livro em português é "Viver com ousadia". O que é viver com ousadia para a senhora?
É interessante porque, em inglês, o título é "Bold Move". Essa é uma expressão muito usada nos Estados Unidos que significa dar um passo que ninguém acha que você pode dar. Para mim, viver com ousadia é viver de uma forma que eu esteja fora da minha zona de conforto, sempre buscando dar um passo além daquilo que eu acho que eu posso dar, desde que isso esteja ancorado nos meus valores, que faça sentido para a vida que eu quero viver.
No livro, a senhora diz que a ansiedade não é nossa inimiga e sim, a evitação psicológica. A senhora poderia explicar melhor isso?
A ansiedade não é o problema. Todo mundo, no mundo inteiro, vai ter um certo nível de ansiedade quando as coisas estão fora da zona de conforto, quando estamos tentando fazer uma coisa que nunca fizemos antes e, até certo ponto, a ansiedade ajuda. Imagina se você fizer uma prova e estiver quase dormindo? Você não foca. Precisamos de um certo nível de ansiedade e apreensão nesse momento. Então, não podemos simplesmente acabar com a ansiedade, como muitos pacientes me pedem. A ansiedade é o que me fez vencer na vida. A questão é o você faz com a ansiedade quando ela passa desse nível necessário para a vida. A maioria das pessoas utiliza uma estratégia chamada evitação psicológica para evitar a ansiedade. Isso nada mais é do que uma reação que traz alívio emocional imediato à ansiedade, mas que provoca consequências negativas no longo prazo. Por exemplo, você recebe uma ligação que você sabe que a pessoa vai falar uma coisa que você não quer escutar. Seu o coração começa a bater acelerado e você tem opção de atender e lidar com o conflito ou empacar com a evitação psicológica. Nesse caso, você pode simplesmente não atender ou até mesmo desligar o telefone e evitar essa pessoa muito tempo. O problema é que quando você evita, você está ensinando seu cérebro que você não consegue aguentar a ansiedade. Momentaneamente, a evitação psicológica ajuda a acalmar o cérebro. Mas no longo prazo, te deixa empacado porque isso só aumenta a ansiedade e rouba aa chance de você ter uma vida produtiva porque você não está vivendo com ousadia. Está vivendo com medo. Você fica prisioneiro do medo e da ansiedade.
Reagir impulsivamente também é uma forma de evitação psicológica?
Sim, a reatividade também pode ser um tipo de evitação psicológica. Isso acontece quando a função de reagir é acalmar momentaneamente o cérebro, mas gera uma consequência negativa no longo prazo. Por exemplo, se toda vez que você tem um conflito, você grita, isso é reagir. Se toda vez que você recebe um e-mail que você não gosta, você responde rapidamente, sem pensar. Porque você não está usando seu cérebro racional. Você está no cérebro emocional e isso é reagir para evitar. É difícil de explicar isso porque as pessoas acham que estão fazendo o melhor possível. Mas, na verdade, a função de reagir nesses casos é acalmar rapidamente o cérebro. Eu mesma fiz isso por anos. Toda vez que eu recebia um e-mail que me deixava ansiosa e que provava que eu não era suficiente de uma forma de outra, eu respondia rapidamente sempre com um tom errado ou com detalhes que desnecessários e, o mais importante, sempre me arrependia depois. Esse é o problema da reação como uma forma de evitação psicológica.
No livro a senhora traz o conceito de regulação emocional. O que é isso e por que é importante?
Regulação emocional é a habilidade de entendermos as duas partes do cérebro. A parte racional, que nos ajuda a calcular, ter razão e programar. E a parte emocional, que tem a função de nos proteger do perigo e de onde vem as emoções mais intensas. A regulação emocional é quando podemos usar as duas partes do cérebro ao mesmo tempo.
Qual é a ciência por trás da cabeça quente? Por que às vezes é tão difícil regular nossos sentimentos e, simplesmente, racionalizar a situação?
Quando o cérebro ativa a reação de "luta, fuga ou congelamento", que é a parte de proteção, a parte de lógica do cérebro não funciona tão bem ou simplesmente não funciona. Por exemplo, se eu colocar uma pessoa em uma máquina de ressonância magnética e medis rua reação enquanto ela resolve problemas de matemática, ela estará indo bem. Mas se essa pessoa tem medo de aranha e eu mostro para ela uma foto de aranha, imediatamente a parte da matemática diminui. Isso mostra que o cérebro racional não consegue funcionar tão rápido ou tão eficiente quando o cérebro emocional toma conta porque esse cérebro foi desenvolvido para nos proteger do perigo. Para correr de um leão, não temos que pensar. Na verdade, se pensarmos, estaremos mortos. Por isso que às vezes é tão difícil regular a emoção, porque a parte racional do cérebro não está funcionando. A boa notícia é que, com treino, é possível aprender a regulação emocional.
Como podemos colocar esse conceito em prática?
Primeiro, precisamos reconhecer que estamos desregulados e entender quais são os nossos gatilhos. Eu vejo da seguinte forma, como se toda as pessoas tivessem botões no corpo, de diferentes cores, vermelho, azul, laranja, verde e amarelo. Se alguém aperta meu botão azul, por exemplo, eu estou tranquila e não vou reagir. O botão seria pressionado com algo prazeroso para mim, como sair com os amigos, ler um livro ou ver televisão. Mas se alguém aperta o botão vermelho, que para mim, está ligado com a ideia de não ser suficiente, isso vai gerar uma emoção muito intensa e uma reação. Então a primeira coisa é entender que dependendo da intensidade da sua emoção naquela situação, você vai reagir. Para evitar que isso aconteça, é preciso de treino. Você tem que começar a pensar quais são as situações que geram essas emoções intensas e o que você faz, como você reage, diante dessa situação, para notar se você está evitando ou não. Com treino, é possível pausar antes de reagir e mudar a estratégia mesmo que alguém aperte um botão vermelho. O problema é que as pessoas porque elas querem uma solução rápida. Mas isso não existe. Você tem que treinar o seu cérebro a entender quais são os gatilhos e, em seguida, desenvolver habilidade para reagir diferente.
A senhora poderia dizer quais são essas habilidades e explicá-las?
Primeiro, é importante entender que para conseguir usar essas habilidades, o primeiro passo é entender seus gatilhos, suas emoções e reações a elas e conseguir “pausar o cérebro” em momentos de emoções intensas. Parece pouco, mas o simples ato de fazer essa pausa antes de reagir é suficiente para ativar o córtex pré-frontal, que é a parte racional do cérebro e que permite usar as habilidades, que são: modificar, abordar e alinhar. Basicamente, modificar está focado nos nossos pensamentos. A forma mais simples de "modificar" é isolar o que você está dizendo para si mesmo e perguntar "se meu melhor amigo estivesse nessa situação, o que eu falaria para ele?". Isso funciona porque ajuda a ativar o córtex pré-frontal. "Abordar" é a habilidade que eu uso mais na vida que é, em vez de evitar, dar um passo na direção daquilo que está gerando medo ou ansiedade. Por exemplo, eu tinha medo de altura. Em vez de evitar a altura, eu fui foi buscando superar esse medo, aos poucos, até conseguir pular de paraquedas. Eu tinha medo de dar palestra. Devagar, eu comecei a fazer isso e hoje dou palestras para mil pessoas, sem problema nenhum. Então abordar é o oposto da evitação psicológica. É dar passos para vencer a ansiedade e viver com ousadia. Quando começamos a abordar, estamos ensinando a amígdala, que controla nosso cérebro emocional, que não tem um leão de verdade, que não precisamos ter medo daquela situação. Uma analogia que eu gosto muito é com a academia. Você não consegue levantar 50 kg da noite para o dia. Você tem que treinar o seu corpo físico devagar. O mesmo acontece com “abordar”, como habilidade psicológica. Por fim, “alinhar” diz respeito a viver uma vida com propósito, alinhada com seus valores. A maioria das pessoas vive uma vida direcionada pelas emoções. Se eu estou ansioso, eu evito. Se eu estou com raiva, eu grito. Reagimos alinhado com nossas emoções. O contrário disso, cientificamente, é viver alinhado com os nossos valores, que são as âncoras da vida. Isso ajuda a ter menos ansiedade, menos depressão e mais qualidade de vida. Eu sempre falo para os meus pacientes: "se você vai sentir ansiedade de uma forma de outra, é melhor sentir essa ansiedade por uma coisa que faça sentido, que faça sua vida mais rica, do que sentir ansiedade por uma coisa que não ajuda nada".
A senhora escreve uma frase muito interessante no livro, que é "a ousadia de ser água, e não pedra". O que quer dizer com essa expressão?
A minha avó sempre falava que em momentos de mudança na vida, a maioria das pessoas viram uma pedra. Então elas se endurecem e ficam presas ao que consideram verdade ou ao que é cômodo, porque isso lhes dá segurança. Essa postura, embora estável, te deixa empacada. A pessoa sabe que aquilo não está funcionando mais, que a vida não é mais o que ela quer, mas o medo não a deixa sair. A outra opção, é você ser água. Ou seja, a vida vai estar cheia de obstáculos, mas quando vem esse obstáculo, você dá a volta, passa por cima, enfim, acha uma forma de contornar a situação e continuar. Eu acho que é importante ser água, especialmente para alinhar a sua vida. Quando penso no meu sucesso, na jornada na minha vida, saindo de Governador Valadares, no interior de Minas Gerais, vejo que tiveram muitos momentos da minha trajetória que tive que ser água. No meu primeiro no Mass General, participei de uma reunião com o chefe Geral do hospital. Nessa ocasião, todos podem fazer perguntas e eu perguntei para ele como eu poderia ter um cargo de liderança no hospital e ter meu próprio centro de pesquisa, que era o que eu queria. Ele riu e disse que antes de você fazer isso, eu tinha que estar preocupada em terminar o primeiro ano do doutorado e conseguir emprego. Durante 10 anos, eu trabalhei para alcançar o objetivo do cargo de liderança e do centro de pesquisa. Várias vezes eu vou que eu estava “indo muito rápido" ou que eu não fiz o “suficiente". Mas toda vez que colocaram obstáculo, eu dei uma voltinha e consegui meu próprio centro de pesquisa, em menos de 10 anos no hospital, o que é considerado muito rápido. Isso só aconteceu porque eu não aceitei o não e porque eu tinha um objetivo claro. O progresso existe, mas ele não é linear nem exponencial, como muita gente espera. Também é importante ter em mente que o rio pode mudar de curso e está tudo bem, desde que isso esteja alinhado com seus valores.
A senhora poderia contar como foi seu caminho do Brasil até Harvard?
Talvez eu estivesse correndo das minhas próprias emoções. Acho que eu tinha na minha cabeça essa ideia de que se eu saísse do Brasil, a vida poderia ser diferente. Aos 18 anos, tive oportunidade de fazer intercâmbio para Buffalo (cidade no estado de Nova York). Foi uma dificuldade louca no começo, mas depois de seis meses, me adaptei bem e gostei muito da ideia do sonho americano naquela época. A ideia de que se você trabalhasse muito, você poderia ser alguém. Quando o intercâmbio acabou, voltei pro Brasil, mas decidi voltar e fazer faculdade nos Estados Unidos e fiz toda a minha formação aqui. Quando decidi fazer psicologia, meu sonho era ir para o Mass General (hospital em Boston ligado à Harvard Medical School), que era o número um no mundo em psiquiatria e fui batalhando para conseguir isso. Acho que as mesmas habilidades que aprendi com a minha mãe e com a minha avó foram me forçando a sempre estar fora da minha zona de conforto e tentar mais um passo, independente da ansiedade e estou aqui há quase 20 anos.
Por que a senhora decidiu fazer psicologia e se especializar em ansiedade?
No Brasil, eu nunca pensei em ser psicóloga. Queria fazer medicina. Mas eu vim fazer faculdade nos Estados Unidos e aqui o sistema é diferente. Você não vai direto para a faculdade de medicina. Os primeiros anos são mais genéricos, com aulas de biologia, química, anatomia, psicologia etc e depois, você decide qual caminho seguir. Nessa época, comecei a fazer aulas de psicologia e a trabalhar como assistente de pesquisa e gostei muito da área. Lembro de ter conversado com a minha avó sobre a dúvida entre ser médica ou psicóloga. Ela me aconselhou a fazer aulas de biologia e psicologia. A que eu fosse melhor e gostasse mais, era a que eu deveria escolher. Eu falei “se for assim, é fácil. Eu só tiro 100% em psicologia e adoro”. O assunto fazia sentido na minha cabeça. As áreas mais voltadas para medicina mesmo, como anatomia, eu conseguia ir bem, mas tinha que me esforçar mais. Então optei por psicologia e comecei a trabalhar nisso. Já a ansiedade, não era exatamente o meu foco de estudo no início da minha carreira. Quando comecei a trabalhar em psicologia, estudei tudo: TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), trauma e também ansiedade. Escrevendo o livro, percebi que eu tinha muita ansiedade. Me lembrei que frequentemente eu tinha ataques de asma na infância. Esses ataques desapareceram depois que meu pai foi embora e, refletindo sobre isso, percebei que aquilo não era asma, mas um ataque de pânico. Então, tive muita ansiedade e venci a minha ansiedade. Além de conhecer a ansiedade como pessoa, eu trato ansiedade há 20 anos e acho que fui tão boa nisso que uma coisa foi levando à outra.
Fonte: O Globo
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